O SOM DA MÚSICA: RODOVIAS EM PAPIRO CIBERNÉTICO III

Saturday, October 14, 2006

RODOVIAS EM PAPIRO CIBERNÉTICO III

NOITE ESCURA PRO DIA NASCER FELIZ

Após um hiato de cinco anos desde o fechamento de sua trilogia de desmistificação do que se convencionou com o carimbo oficioso de Música Popular Brasileira neste país, o cantor e compositor Lobão retorna com aquele que seguramente é seu trabalho mais bem acabado. Desmistificação da MPB, sim, aquela mesma da abreviação que em tese corresponde às manifestações musicais em solo tupiniquim desde a invenção do termo no final dos militarizados anos 60 até os dias de hoje. A distinção é importante uma vez que, para incauto gringo ou até mesmo leigo nativo, música popular brasileira é bossa nova, samba e todo o exotismo tropicaliente sob a chancela do idioma lusitano temperado ao sul do Equador. E, ao contrário do que já apregoou um certo bissexto roqueiro baiano, João Gilberto não corresponde de forma local em absoluto ao Elvis do rock branquelo a azedar o pop em vias de globalizar-se, uma vez que o caráter dionísico que caracteriza a atitude do rock não se faz presente no baticum apolíneo do violão bossanovista, ainda que tenha exercido sua influência renovadora ao cenário da música feita no país durante algum tempo.

Mal-comparando, é como a história de Macca correndo atrás do Joaõzinho Podre do punk britânico, eternizada por um hoje puto velho e irônico Lydon. Ou ao grosso modo uma equiparação mais ainda improvável e deslocada do que a asséptica chancela comercial do rock branco para a criatividade dos pioneiros "de cor" junto à audiência bem-comportada dos consumidores de canções nos primórdios da veiculação e comercialização da nova música-velha de hoje nos anos 50. E o que acontece com a empreitada anti-MPB institucionalizada de Lobão, já tentada por outros e caracterizada por intermédio de sua trilogia de álbuns nos anos 90 (Nostalgia da Modernidade, Noite e A Vida é Doce), é justamente a tentativa de uma virada de mesa a partir do momento em que, chamada a atenção da opinião pública, se torna possível a proposição de questionamentos acerca da própria noção de identidade de nossa música popular. Bastarda, pois assim se formou o povo que somos por intermédio da miscigenação de inúmeras etnias. Bastardice também característica à gênese do próprio rock'n roll, aquele das pedras que rolam para não criar limo. Você me entende...

Vale lembrar absolutamente que Lobão não foi o primeiro a levantar este questionamento quanto à interferência externa, que se inaugura em maior escala com matizes mais visíveis na antropofagia perpetrada pelo Modernismo, mas cuja discussão não se restringe a isto. O próprio Tropicalismo, em âmbito musical aqui melhor representado pelo conjunto Os Mutantes e pelo artista multifuncional Tom Zé, levantou estas questões voltadas ao tradicionalismo da concepção de nossa identidade musical nos 60, assim como a MPB maldita dos 70 (bem-dita seja) reforçou esse questionamento ou a vanguarda paulistana do início dos 80, o mangue beat nos 90, etc.

Rock'n Raul Seixas também não chegou a fazer tal distinção no cômputo geral de sua trajetória discográfica assim como também até mesmo aqueles "apocalípticos" que questionaram os ditames da mercadologia pop seguidos pelos "integrados" à lógica criativa do início da corrida pelo ouro do mercado para o jovem no país, cuja longevidade artística é associada à vida útil de um chiclete. Querendo ou não, todos acabam por endossar o coro desta, na maior parte das vezes, velada discussão: Camisinha de Marceleza e sua abordagem escrota aos cânones tradicionais, Lobão em duetos com Elza Soares e Nelson Gonçalves, Cazuza gravando Nelson Cavaquinho logo após sair do Barão, RPM em ótimas parcerias com Milton Nascimento, etc. Footloose, gatinha!

E ao se considerar a validade desta discussão, se torna possível um melhor entendimento deste Canção Dentro da Noite Escura, um dos vários trabalhos que endossam este questionamento acerca da identidade bastarda de nossa música e não por acaso, o melhor álbum da trajetória de Lobão, aqui em plena realização de seus méritos musicais.

Conceitualmente, musicalmente, liricamente, etc et al. falando, é um disco redondo, amparado em formato de opereta rock ambientada em um Leblon claustrofóbico e idealizado, bairro onde o artista morou bastante tempo e do qual é até referência desde os longínquos anos 80. E por falar nisso, até mesmo o famigerado refugo oitentista também dá as caras por aqui, sem necessariamente ser sinônimo de musicalidade rasteira e tola. No entanto este se dá pelo improvável viés de elegias personalizadas aos companheiros que já se foram, que ficaram pelo caminho enquanto o velho lobo continua a uivar junto à moçada mais nova. Júlio Barroso, Cazuza, Cássia Eller estão entre os legados radiografados em canções, homenageados no decorrer do álbum junto ao baterista do Traffic Jim Capaldi, aquele que deu a dica do caminho das pedras da composição para o então mero batuqueiro prodígio.

É um disco soturno assim como também o era Noite (de 1997), diferentemente da aurora que caracteriza A Vida é Doce (de 1999), momento-chave ao entendimento da atual trajetória discográfica do compositor. A fim de mostrar manejo técnico da tradição, Canção Dentro da Noite Escura começa com uma bossa não-ortodoxa. E marca a caminhada da personagem principal do enredo noite escura afora pela orla do Rio de Janeiro do início do século XXI, ainda paraíso tropical aonde a outrora Voz do Morro de um Rio 40 graus agora dá espaço ao black eyed peas entronizado nos proibidões da hora típicos de guetos que amendrontam cada vez pela abusada imponência de sua música urbana a anos-luz da parada pop e de trilha sonora para turista.

No delírio do caminhante noturno (alô, Mutantes), a Lua é uma ilha longe que testemunha as andanças do sujeito pela costa. Assim como Johnny Cash, Jim Morrison, Thom Yorke e mais um monte de criadores pop, Lobão também encontra inspiração para sua música nas caminhadas que implementa pela estrada afora. E este é o panorama que acaba por alivanhar o enredo da opereta rock, um trabalho marcado por uma poesia urbana roqueira na atitude, em se tratando de um rock em idioma local em geral tão carente de um texto melhor alinhavado.

Cartão postal que apresenta uma cidade maravilhosa em musicalidade distinta a que se eternizou nas serestas ao som de Dick Farney, diga-se de passagem, “Pra sempre essa noite” traz uma bossa híbrida com rock pesado e música eletrônica. Um tanto distante das bostas velhas eternizadas em piano bar à beira do mar apenas para turista deslumbrar. Uma guitarra percussiva safada faz às vezes de baixo batucado em determinadas passagens da canção, notadamente nas partes mais líricas. Dá pra ouvir os dedos da mão esquerda escorregando entre os trastes do instrumento e também até para imaginar o que um arranjo de cordas sintetizadas em teclado poderia trazer à canção. Mas como o passeio é a pé em frente ao mar, então não haveria de convir mesmo ao arranjo, podendo deixá-lo rococó e indulgente. Fica legal, econômico, exatamente do jeito que é.

Guitarras levemente distorcidas pautam o clima instrumental da canção pontuado por um baixão sinuoso e uma levada de baterias complementares entre si. A eletrônica dá o tom meio drum’n bass oriundo de algum boteco próximo a qualquer casa antenada às tendências da e-music enquanto a bateria “orgânica” pauta peso pesado a uma música calma, típica de início de jornada. Violões de nylon e um batuque típico de MPC equilibram a mistura. É o abre-alas mais que adequado ao disco - uma homenagem a um imaginário Júlio Barroso no século XXI. Sofisticada, mas sem relegar-se de sua contundência característica e moldada por um lirismo de certa forma cosmopolita. "Por que não?... E por que não?", da mesma forma que bradava uns dos mais difundidos comerciais de um mercado que passava a descobrir o jovem nos 90 e que parece ter perdido sua capacidade de comunicação em larga escala disseminada na ladainha restrita voltada a lógica de segmentos.

Em seguida, como se não houvesse fronteiras entre as músicas, começa “Seda”, a parceria "mediúnica" entre Lobão e Cazuza como nos tempos de “BabyLonest”, "Glória, a Junkie Bacana" e “Mal Nenhum”. Longe da melancolia característica da bela “Azul e Amarelo”, parceria entre um poeta moribundo e um parceiro exilado de seu próprio país dos finais dos anos 80, um lado Z do período desconsiderado pela meninada e pelos velhotes que tanto celebram nos dias de hoje a perdição de suas gerações na catequese da mudernage consumista de um mercado-cabaço travestido em uma espécie de paraíso da diversão inocente - isso enquanto a maçã do conhecimento disposta à face deles permaneça intacta até seu apodrecimento em um momento em que dirão “mas como?”, verdadeiro nhaaaaac em nada parecido com a inocente mordida de delícia cremosa (N.E.: Leram o Ferrez?).

Aqui Lobão se apodera do Skylab que também existe dentro dele mesmo e sai quase declamando como um antigo seresteiro a ironia acridoce típica dos versos daquele outrora ex-Barão do pop rock nacional. É material daquela época dos estertores de um poeta celebrado em tributos aquém de seu poderio artístico e comportamental ceifado pela peste de sua época (N.E.: Salve Camus). Sobrevivente dos excessos de uma geração suicida aos parâmetros comprometidos ao bom mocismo irreverente da inocência desta mesma juventude (N.E.: você já viu o filme Tropiclip?) diante da possibilidade do alvorescer da esperança de uma nova época a se configurar no laço frouxo do cabresto institucional das liberdades políticas no país, mas perdida nos descaminhos do pop e seus excessos.

O cantor prepara-se para tocar fogo em seu próprio pavio de homem-bomba que ajuda a incinerar o que há de caduco no cenário ao se apropriar da poesia do colega, amigo e inimigo na concorrência de uma identidade que a música jovem no Brasil começava a consolidar de forma mais palpável além dos limites dos subterrâneos, para implementar até suas mais recentes provocações. Provocações que não se limitam apenas ao âmbito textual, pois “Depois das Duas” é musicalmente algo como se os Los Hermanos pós-Ventura o encontrassem para uma improvável jam em clima de ressaca do mesmo inimaginável Lobão-Skylab que definitivamente desincorpora do ex-baterista da Blitz ao final da música a fim de servir de espantalho em alguma outra freguesia do cenário da música maldita carioca dos 2000. Como um mendigo que aparece do nada na madrugada chuvosa, saindo de algum bueiro a fim de não se afogar, porém dando um baita susto em quem porventura esteja perambulando pelo local. "Perdeu, preibói"... A canção se encerra com um batuque tribal seguido de ruídos como se o mendigão arrefecesse ao cansaço e à manguaça e tombasse em algum canto qualquer, avizinhando a atmosfera do disco para o próximo tema em homenagem à Cássia Eller, personalidade artística cujo espectro já tangenciou a temática de "A Hora da Estrela", canção homônima ao livro de Clarice Lispector que conta a história de uma jovem que sai do interior em busca de realização na cidade grande, gravada em Nostalgia da Modernidade. Mera coincidência?

Aqui ela é eternizada como uma cinderela tombada pelas pressões do ofício de artista pop que a impediram de realizar plenamente seu potencial artístico visando então apenas o suprimento de uma determinada demanda da audiência de a enclausurar na camisa-de-força populista da garotinha má que esboça uma malandragem que uma autoridade no assunto como o é Ângela Rorô chegou a ironizar na tevê algum tempo depois sem esconder uma certa tristeza. Esta, a mesma pata-rouca blueswoman que recusou o privilégio de gravar em primeira-mão a famigerada canção-aríete na carreira da marginal notória da lona circense carioca na passagem dos 80 para os anos 90 e se perguntava o que seria ou não malandragem (Fala, garoto!). Ao contrário das artimanhas do típico golpe atribuído aos desavisados, Cássia perdeu algo mais valioso que a carteira e aqui é lembrada em razão da proximidade, do afeto e também dos próprios encontros nas estradas roqueiras com o “Senhor Espantalho”, mais notadamente nas datas em que os dois dividiram os palcos. A cantora chegava a ostentar o status de show-de-abertura, mesmo com um Olympo (N.R.: casa de shows localizada no subúrbio de Vila da Penha, Zona Norte do Rio) lotado de fãs seus, enquanto Lobão tocava o trabalho de divulgação de seu A Vida é Doce.

“Boa noite, Cinderela” foi escrita por Lobão em plena comoção causada por seu desaparecimento repentino e chegou até a figurar na condição de poema-destaque em um ou outro portal da internet brasileira via publicação no site da revista Trip. No entanto, a musicalidade encarnada ao poema cristaliza-se como uma homenagem digna à memória da intérprete das mais cativantes a surgir na música brasileira recentemente. Hard-blues fantasmagórico com vocais dilacerados bem de acordo com a atmosfera das noites blueseiras que incendiavam a Lapa que tão bem acolhia Cássia dos oitenta até à fase Malhação de seu hit maior.

E como quem acende uma vela e continua a dança, como em um poema de Ginsberg, Lobão acende o pavio de uma bomba atada ao próprio corpo qual um camicase típico dos tempos atuais. Aqui fala mais alto sua faceta de terrorista cultural, aquela mesma que lhe tomou a alma no evento em homenagem a Tim Maia e volta-e-meia dá as caras na hora de chamar a atenção a alguma disfunção dos mecanismos relacionados à produção musical e sua comercialização industrial no país. "Homem Bomba" é uma canção aparentada de "Tão Menina" de A Vida é Doce, no entanto sob o viés de outro enfoque. A atmosfera aqui é quase nu-metal, chumbo-grosso sonoro como não poderia deixar de ser. Vocais gritados, afinação mais baixa, baixo distorcido, clima de urgência, quase de pânico generalizado. Vale chamar a atenção da coesão do texto em todo disco, uma constante em todo este trabalho e uma marca registrada dos trabalhos “menos comerciais” do cantor, exceção feita a uma certa canção descartável em seu Nostalgia da Modernidade (1996). Já ouviu o disco? Vale a conferida.

Em seguida, Lobão acena em texto ao amigo Arnowdo Baptista (fala!) em “Vamos para o Espaço”, na qual o compositor toma emprestado o Disco Voador do ex-mutante. Musicalmente a canção é pautada por um groove mestiço estranhamente quase alienígena nas dissonâncias de sua harmonia, nas intervenções do produtor Carlos Trilha e também nos trêmolos das guitarras oscilantes de tons adulterados pelos mecanismos de alavanca do instrumento. Arnaldo e Lobão são artistas de uma mesma cepa alternativa e como se você não soubesse, Let It Bed, o bonito disco que trouxe a atual verve musical do ex-Mutante às pautas do jornalismo diário, foi lançado pela revista OutraCoisa. E merece destaque!

A estranheza dá espaço à canção mais radiofônica de todo o disco, “Você e a Noite Escura”. Mimo tão fantasmagórico quanto um ramo de flores roubadas na madrugada chuvosa e entregues a sua menina em pleno sono dela. Musicalmente remete às baladas mais singelas do velho Lobo, as mesmas que figuravam o playlist das mais populares rádios pop rock. Sério mesmo, os cariocas podem até imaginar um improvável locutor da Transamérica saído direto dos 80 anunciando: “este é o mais novo sucesso de Lobão...”, como se o panorama radiofônico não estivesse mais calamitoso do que o mais pessimista poderia imaginar naquela época, salvo raras exceções (Salve, Maurício! Fala, Kid! Alô, Nova, etc.)

A leveza é em seguida pisoteada pelo peso e a ironia afetiva da “Balada do Inimigo”. Belo petardo sonoro que amarra ainda mais o conceito claustrofóbico do disco. Aqui aparece o Lobão Mau em sua melhor forma em música e texto, remetendo aos momentos mais "porrada" de seus trabalhos concretizados na citada trilogia. Uma das primeiras composições concebidas para o álbum, a música, que chegou a ser divulgada como "Canção da Salvação" em seus primórdios, sintetiza a atmosfera do disco como um todo, do mesmo modo que toda a sua tensão se esvai no sublimar da faceta negativa dos sentimentos expressados na própria música. Destaque ao timbrão parrudo dos tambores muito bem tocados e adequadamente registrados como em nenhum trabalho anterior em disco do lobo. Sonzão!

E com a guarda em baixa em “Tranqüilo”, o Lobo Mau então se traveste de Chapeuzinho Vermelho de si mesmo e pela estrada afora segue em sua aventura pelo universo paralelo que caracteriza a música brasileira alheia à cultura do comercialismo improdutivo enquanto finalidade “artística” por si só. A música carrega em si um clima interiorano, de violões pautando uma atmosfera quase de música de acampamento, como se fosse trilha sonora de aquecimento para uma possível retomada de shows.

Outra parceria mediúnica com seus saudosos parceiros dá o tom em “Quente”. A música foi concebida a partir de um texto inédito de Júlio Barroso, guardado durante décadas por um de seus amigos mais chegados, é uma balada quase rural ornamentada por guitarra distorcida, cello e sintetizadores. O clima ainda é de um estio no meio do mato movido à repelente, chamego e à luz de lamparina que dá lugar a mais um Sol bonito que aparenta avizinhar-se. E avizinha-se de verdade nos dizeres que anunciam a instrumental “Aí, Galera Maluca!”, caricatura vocal do cartunista Adão Itarrusgarai a sugerir junto ao tema instrumental que é época dos loucos de outros tempos e também de novas eras tomarem conta do hospício e ditarem alternativas apreciáveis à pasmaceira do cenário musical que se apresenta cada vez mais caduco enquanto institucionalizado em sua inércia pouco produtiva.

“Não Quero o seu Perdão” apresenta novamente mais uma bela homenagem a Júlio Barroso, criador que não chegou a concretizar as possibilidades de seus potenciais criativos, encerrados em sua precoce passagem em 1984, nos tempos de Jovem Guarda BRock. Lobão chegou a declarar em entrevista a uma revista de grande circulação nacional que seu amigo representava o que seria talvez a mente mais brilhante entre os expoentes daquela geração que até então apenas se enunciava nos rodapés das pautas culturais de nosso dia-a-dia. E com sua ausência, aquela mesma geração se tornara órfã de um potencial que sequer chegou perto de se esboçar na realidade. Ao grosso modo, o que submerge rumo a superfície midiática em se tratando do legado de JB é simplesmente a faceta mais caricatural de sua personalidade artística, esta mesmo assim anos luz do bubblegum niu-ueive perpretado na ocasião. Júlio Barroso trouxe uma faceta cerebral e delirante, com menções à antropofagia modernista sem, no entanto, se restringir a ela, ao que era meramente pueril e descartavelmente pop. É também até um acerto de contas, pois a OutraCoisa guarda parentesco à revista Música do Planeta Terra concebida por Júlio ainda nos 70 e o que ela representa é de certa forma inimaginável a quem não vivenciou a época.

Para conceber esta parceria também “mediúnica”, assim como também o são “Seda” e "Quente", Lobão lançou mão de um poema chamado "Não Quero o seu Perdão" e adicionou versos de outra empreitada poética, ambas já compiladas no livro póstumo A Vida Sexual do Selvagem (1991), organizado por Denise Barroso, irmã de Júlio. Vale lembrar que ainda que Lobão não tivesse ciência disso, conforme você confere na entrevista concedida a este blog, estes poemas não são inéditos para quem acompanha atentamente a produção musical nacional. O Barão Vermelho capitaneado por um Frejat recém-alçado à condição de cantor e frontman do grupo lançou mão do mesmo poema de Júlio no disco Declare Guerra (de 1986). E vale frisar que as duas empreitadas são dignas da chancela da homenagem, sendo a do Barão emoldurada por um rock de harmonia básica quase rockabilly - underhit na Fluminense FM dos anos 80 em uma fase de menor visibilidade do grupo.

No entanto, cada uma das homenagens é completamente distinta da outra e, para arrematar sua versão musical da roupagem do poema de Júlio, Lobão lançou mão de outras passagens poéticas de JB. E o que mais chama a atenção é justamente o apelo do texto de Júlio, pois a versão de “Não Quero o seu Perdão” de Lobão foi complementada com os mesmos versos com os quais a Gang 90 o homenageou seu ex-líder em “No Fundo do Coração”, belíssima balada lançada no disco Rosas e Tigres (de 1985), o primeiro álbum sem Júlio. A faixa no disco da Gang era cantada pelo baterista Gigante Brazil e seu refrão entoado por Taciana Barros, a última mulher de Júlio. Por deméritos extramusicais, "No Fundo do Coração" ficou restrita a poucos conhecedores. E a grande surpresa, coincidência – ou, seja lá o que for - é justamente a aparição destes mesmos versos perfeitamente emoldurando a versão de Lobão, como se tudo fosse apenas um poema só, radiografia em texto da força criativa das motivações emocionais do escritor Júlio Barroso. Um sujeito que trouxe informações novas à incipiente cena noturna voltada ao rock na capital paulista, na condição de DJ da boate Paulicéia Desvairada, nos tempos em que ser disk-jóckey em geral não era coisa pra qualquer bundão.

Ao fim da jornada do caminhante noturno, “A gente vai se amar” fecha o disco com tons de redenção anunciando um lindo Sol da perserverança que de certa forma vem a caracterizar o firmamento de um novo panorama da produção e consumo de música no país, no consolidar de uma nova concepção aos termos. Afinal de contas, quem se preza e é afeito à música não simplesmente que segue piamente o vai-e-vem das marolas musicais do mercado. É aquele jovem que não nasce velho e segue sedento por novidades. E a aurora de novos tempos enunciada no alvorescer da Nova República em pleno megafestival de Rock e festejada pela massa roqueira com um ufanismo esperançoso era apenas sinal de que tudo a ser firmado haveria de ser feito cotidianamente, dia após dia, na labuta diária. Sem élan ou "cagação" de goma!

Das derrotas da geração oitentista embelezadas à posteridade ou mesmo caladas no silêncio velado na intimidade ao vigente ostracismo compulsório destinado à nação de artistas exilados da grande massa, até o momento Canção Dentro da Noite Escura não chegou a realizar seus plenos potenciais, ficando restrito ao cenário musical independente a despeito da viabilidade do apelo das canções contidas no disco. Com um Lobão ocupado com outras atividades que não somente a música, mas essencialmente ligadas a ela, a difusão do disco esbarrou em parte nas limitações impostas pela cultura da verba de divulgação em torno da promoção de seus fonogramas. Um trabalho que na atual conjuntura dificilmente encontrará a luz oriunda dos holofotes além do segmento, o que se configura propriamente em um corrente modus operandi dos atuais circuitos musicais.

"Nem Rambo, Telecatch..." E se, para muitos, sua às vezes histriônica persona política é indigesta, no entanto o esbravejar provocativo do cantor foi a senha encontrada para chamar atenção às disfunções do mercado em razão das quais se viu várias vezes em beco sem saída. Hoje em vias de produzir seu Acústico MTV, formato que ultimamente tem funcionado melhor em âmbitos musicais do que outrora uma famigerada alavanca de carreiras pop em suposto declínio (N.E.: exemplos bem-sucedidos de Ira!, O Rappa, D2, Zeca Pagodinho, Lenine, etc), Lobão vai se deparar com supostas contradições dignas da alma de todo artista que se preze. No entanto, se seu raciocínio ainda é estreito, o cantor promete um projeto distinto, sem grandes extravagâncias de produção, mesmo que o projeto agora ainda lhe seja incipiente. E se a personalidade do artista fala mais alto que a música aí o problema é do ouvinte. Deixe a música falar a ti por si mesma... Pessoas como nós se interessam principalmente nas manifestações artísticas...

Mas para alguns, a turva sombra que relegou este e mais uma infinidade de trabalhos dignos de nota ao ostracismo acabam por fechar o conceito do disco em torno de uma penumbra generalizada enquanto aos futuros caminhos da música no país, na qual o Sol do alvorescer de uma nova era seria nada menos que mero farol de quimera para náufragos de uma realidade mercadológica clandestina e corsária ao amante de música. No momento, o panorama ainda é escuro como a turva noite ilustrada no álbum de lobo. No entanto, vale a máxima de que Sol nasce para todos e por isso o panorama da difusão de música por aqui haveria de ser nivelado por méritos não-somente oriundos do poderio da máquina marketeira em torno do jingle.

Texto de Marcus Marçal. Não é permitida a reprodução destes textos de forma alguma sem permissão prévia, seja em sua forma integral ou parcial. Por favor, contate-me antes via e-mail.

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Sou Marcus Marçal, jornalista de profissão e músico de coração.

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Caso queira entrar em contato, meu email é marcus.marcal@yahoo.com.br.
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