O SOM DA MÚSICA: JUKEBOX VI

Wednesday, February 21, 2007

JUKEBOX VI

Canção da Torre Mais Alta

Depois de muito tempo, outro dia eu voltei a ler os textos do maldito escriba francês Jean-Nicola Arthur Rimbaud. As primeiras vezes que tive contato com sua obra foi na adolescência, intrigado com a profusão de referências a seu nome na obra de tanta gente da música rock que eu já apreciava. Eu tinha por volta de dezesseis anos e a referência mais explícita a sua obra figurou justamente na adaptação que uma legendária banda de rock do Rio verteu a um de seus textos no formato de música: Canção da Torre Mais Alta, um poema em meio à prosa poética absolutamente caótica de sua primeira compilação de textos, chamada Une Saison en Enfer. Não era a primeira vez que ouvira menção a seu nome no cenário roqueiro mas, por se tratar de uma citação integral de trecho de uma de suas obras, em premiada tradução de Lêdo Ivo ao português, resolvi procurar o livro.

Não conseguia encontrá-lo em lugar algum, mas acabei por achá-lo em uma biblioteca pública de minha cidade natal, "Maxambomba". Na ocasião, eu batia pernas pela cidade após as aulas e, numa aparentemente aleatória sucessão de pequenos acontecimentos, eu acabaria chegando ao local. Estavámos eu e um bróder meu, que na época tocava comigo num conjuntinho de rock. Cidade pequena, acabamos esbarrando com duas garotas da escola pelo caminho, tempos depois uma delas se tornaria minha namorada, apesar de então mero flerte improvável entre realidades tão distantes. Rolou uma coincidência interessante, pois meia hora depois eu acabaria acompanhando meu amigo à tal biblioteca, onde ele entregaria dois livros emprestados, Diário de Anne Frank e Christiane F. Não estava com muita paciência para aquilo, mas acabei indo e, ao chegar lá, rolou a surpresa de revermos as garotas por lá, fazendo alguma pesquisa para escola ou algo do tipo. Enquanto olhava o acervo pequeno da biblioteca, avistei uma edição do primeiro livro do Rimbaud. E uma das minhas músicas preferidas da época era justamente a versão do Hojerizah para Canção da Torre Mais Alta. "Venha, venha o tempo que nos enamora...".

Aqui no Rio, mais precisamente naquela época, o grupo era bastante popular entre a parcela adolescente que se criara na democrática liberdade estilística da antiga rádio Fluminense FM. Várias de suas músicas tocavam na programação normal da emissora e duas canções do disco de estréia do grupo chegaram inclusive a aparecer na parada musical da pop Transamérica FM, coisa que hoje nem o maior lunático poderia imaginar. Nesta época, o Hojerizah lançava seu segundo LP, Pele, de 1988. Assim como seu antecessor, epônimo, era um disco belíssimo, carregado de uma poesia estranha ao universo das bandas cariocas daquele período recheado de bandas estranhas nos subterrâneos. Texto também a destoar do teor literário das empreitadas roqueiras do underground paulistano da época, mais naturalmente afeito a textos inusitados em formato rock.

Para mim, estes discos são atemporais, como toda boa obra musical que se preze. Mas esta música é considerada até mesmo pelos integrantes e, se não me engano, sequer chegou a ser tocada ao vivo. Por motivos de ordem extraordinária, a banda encerrou as atividades pouco tempo após o lançamento do disco. Mas chegou a celebrar o repertório antigo em duas épocas distintas, a mais recente delas em, pelo menos, uma apresentação memorável para quem teve a oportunidade de testemunhar.

Guardadas as devidas proporções, o texto oblíquo do Flávio Murrah desde então sempre me serviu de inspiração, nos primórdios de minhas tentativas de escrever texto de música. Vi a banda ao vivo na época e revi seus retornos a ponto de uma destas passagens renderem algumas de minhas primeiras tentativas de texto jornalístico sobre música na web. Certa vez, também fiz uma visita ao Murrah e ele me mostrou folhas e folhas cheias de músicas de sua autoria inéditas. Era algo por volta de umas 250 ou 300 e fiquei impressionado com a quantidade e também pela qualidade da parte do material que cheguei a ler. Escutei algumas, ótimas.

Flávio é um compositor genial, mas já foi detonado pelo Jamari França (jornalista de profissão, mas então outrora bissexto produtor executivo do primeiro disco do Hojerizah) em seu quadro ao estilo Flávio Cavalcanti na tevê da época e também pelo Arthur Dapieve, que tachou-o uma espécie de "cruza demente entre Jimmy Page e Johnny Marr", em função de seus problemas de ordem particular. Este mesmo que, em uma obra de referência, exalta nomes de menor vulto artístico, porém de maior visibilidade. Um exemplo de como a crítica musical também pode ser gratuitamente rancorosa! Não é verdade? Mea culpa que também dirijo a mim mesmo, em razão à exposição de meu material apurado junto ao compositor na visita citada no parágrafo anterior.

Como uma espécie de pedido de desculpas em público, devido à consciência pesada sempre que me deparava na web com a entrevista solo a mim concedida por um Flávio Murrah com o coração aberto à abordagem de quaisquer temas, eu compus a letra de "Luna", canção presente nas Andaluz Aurora Demos, uma homenagem a Syd Barret e a Murrah. Misturei um pouco do impacto emocional de ver um documentário sobre o Dark Side of the Moon, com meu testemunho do mea culpa de parte do Hojerizah junto ao próprio Flávio na ocasião da entrevista que me concederam em 1999.

No entanto, nada disso poderia ter algum sentido se eu não me colocasse na história, ao ponto de anabolizá-la com tintas de própria experiência, mais necessariamente sobre como eu me senti em determinada passagem roqueira na minha juventude, determinado período "through my darkest hour" em que os primeiros discos do Dave Mustaine nunca mais me poderiam ter tamanha importância depois. Entende?

No entanto, eu nunca perguntei o que Murrah achou da homenagem, mas fiquei imensamente feliz de tê-lo encontrado na rua pouco depois e ter sido acolhido com um sorriso. Sinceramente, espero que as desculpas tenham se efetivado e que ele esteja bem, compondo bastante! Do material recente que ouvi, me ressenti ao fato de ele não contar com um cantor à altura de Toni Platão. Mas isso é vida que segue... No entanto, este mesmo a meu ver só conseguiu equiparar seu trabalho solo ao brilhantismo do Hojerizah apenas durante a turnê de seu segundo álbum, quando reinventava seus vocais a cada apresentação ao ponto de rolar o papo de um possível lançamento ao vivo que, se chegou a ser registrado, nunca foi lançado.

Trajetórias turbulentas, porém brilhantes, que me remetem à própria história do poeta francês. Nas minhas primeiras leituras de Rimbaud, assim como já acontecera com os textos de poetas beat que li no início da adolescência, simplesmente não consegui entender porra nenhuma. Ou melhor, quase nada! Mas fiquei bastante intrigado com a forma caótica na apresentação dos textos. Pois se Une Saison en Enfer era poesia da melhor qualidade, então eu já podia seguramente afirmar que o encadeamento das palavras ali me soava muito mais interessante do que o material que eu tinha contato nas aulas de literatura na escola, naturalmente mais afeitas ao formalismo de normas de estilo do que propriamente com textos que radicalizem a apreciação do leitor ao mundo em sua volta. Sempre preferi um conteúdo caótico a um normalismo da forma, seja em música ou textos.

Posteriormente já havia me tentado a ler o material do poeta francês em outras ocasiões, mais precisamente sempre que percebia alguma referência explícita em depoimentos de um monte de gente interessante na história da música, como Bob Dylan, Jim Morrison ou Patti Smith, ou mesmo quando notava uma certa sensação confortável de sentir já ter lido um texto anteriormente mesmo quando você o lê pela primeira vez. Uma certa (in)fluência de estilo que te salta aos olhos durante à leitura, sem que você saiba precisar exatamente onde leu isto ou aquilo... E é aquela coisa: o cara não é realmente bom só porque um ou outro ícone pop resolveu exaltá-lo em algum momento. É justamente ao contrário! E dá bastante trabalho ler e sorver o que se pode do material.

E por mais que o caráter biográfico da obra do cara se sobressaia em trechos dos livros, isso é menor do que o vulto atemporal de sua visão de mundo eternizada na organização de letras, palavras... Por mais que sua folclórica história de progídio da literatura a abandonar seu ofício na tenra idade, aos dezoito anos, em direção a esta verdadeira aventura que é e deve ser a vida, já tenha sido fossilizada até mesmo por Hollywood em um filme que minha macheza inferioriza (ahahah), tudo isso é café pequeno no que sua arte de viver manifesta em estética possui de inspiradora. E é aí que as aparências enganam ao míope mais ordinário, pois a jornada em direção ao conteúdo eternizado em seus textos requer, antes de tudo, entrega. Without a safety net!

Quanto mais material disponível para sorver a obra, melhor. Prova disso é o trabalho de estudiosos de sua obra, da qual o pínaculo em língua portuguesa seria a tradução da Lêdo Ivo com posfácio de Manuel Bandeira. No entanto, quanto mais se contextualiza sua obra, mais se perde dela seu maior encanto: justamente o impacto que o material pode aleatoriamente lhe provocar. Aleatoriamente em razão da já-citada verve caótica do francês, pois certamente este nunca foi um escravo de seu próprio ofício - apesar da possível intromissão alheia no resultado final de sua segunda obra, Illuminations. Sempre tem filho-de-puta querendo meter o bedelho!

É claro que um clássico deste porte mereceria menção melhor do que a mera associação a uma releitura musical feita por mim neste blog. Mas não se trata de menção a uma música qualquer, diga-se! Tampouco esta seria ocasião adequada para uma resenha da curta, porém de fulgor intenso, obra de um profanador cândido e, ao mesmo tempo, maldito como Rimbaud. Mas como se trata de uma obra que se deve ler várias vezes, quem sabe eu me predisponha a resenhá-la na ocasião de uma próxima leitura!

Texto de código-fonte aberto de Marcus Marçal. Não é permitida a reprodução deste texto de forma alguma sem permissão prévia, seja em sua forma integral ou parcial. Por favor, contate-me antes via e-mail.

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