O SOM DA MÚSICA: ENTREVISTÃO III

Wednesday, February 28, 2007

ENTREVISTÃO III


Fellini, Os Gilbertos e Funziona Senza Vapore (Thomas Pappon e Cadão Volpato)



Abaixo segue o material compilado de duas entrevistas que culminaram em uma matéria sobre as três bandas do título. Primeiro, consegui por intermédio da revista que publicava meus textos de rock uma entrevista com o Thomas Pappon. Se não me engano, radicado até hoje na Inglaterra, onde trampa para a BBC de Londres como jornalista, este veio ao Brasil em razão de compromissos profissionais: iria fazer um documentário que confesso nunca ter visto sobre nossa amada Elza Soares, embaixatriz do Brasil. Reverência acima de tudo é a nossa dama do samba, que posteriormente tive o privilégio de testemunhar ao vivo em uma inusitada formação em que era acompanhada somente e simplesmente pela Orquestra Tom Jobim de Música Jovem em um festival de música clássica e ópera que tive a oportunidade de fazer a cobertura pelo site VocêVai, afiliado à revista Rio, Samba & Carnaval em 2001!



E foi em um intervalo de seus afazeres profissionais aqui no Rio que aproveitei para entrevistar o Thomas Pappon. Somente alguns meses depois eu haveria de entrevistar o Cadão Volpato, este em pleno horário de almoço da revista Época, onde ele trampava na época. Nesta ocasião, quanto mais eu fazia as perguntas, mais eu percebia que o cara estava desesperado para enviar algum rango para seu bucho. Mas acho que o esforço valeu tanto para ele quanto para mim, mero repórter a fim de perguntar um monte de coisas que nunca sequer vi mencionadas na imprensa tradicional, aquela de revistas e jornais, se formos nos relegar apenas à mídia impressa mais "oficial" do período.



Se não me engano, foi o Lariú que deu a dica ao pessoal da revista e eu acabei fazendo a matéria - apesar de eu já ter comentado com ele a respeito de meu interesse sobre a banda. O Lariú, mais ou menos da mesma idade que eu, acabou lançando por intermédio de seu selo, o midsummer madness, o disco-solo de Thomas sob a alcunha de Os Gilbertos e posteriormente ainda haveria de bancar a tiragem do até agora canto-de-cisne da banda, chamado Amanhã é Tarde, lançado pelo midsummer madness alguns anos depois e promovido em um único show no Tim Festival - ocasião inesquecível para os apreciadores do som do grupo matar as saudades.



Cheguei a vê-los ao vivo em 1990 em um festival no Teatro Ipanema que recebeu até destaque na revista Bizz. Depois o grupo reencarnou em uma mini-turnê que culminou em um único show solo "na cidade dita maravilhosa pois é mesmo", na extinta boate Bunker '94, em Copacabana lá por volta de 1998 ou 1999, não me lembro exatamente o ano. E o mais bacana desses bate-papos todos não foi nem a publicação da(s) matéria(s) propriamente dita(s)...



Na verdade, eu publiquei um texto corrido na tal revista do rock estresse e aproveitei as entrevistas para o site da festa Loud!, que nesta na época ditava de "certo modo" tendências musicais não-ortodoxas ao público que curtia a noite no Rio. Desculpem-me, mas já vi gente me "cobrando" por posturas musicais que ajudei a divulgar por intermédio do site da festa, onde colaborei na base da brodagem (fala, Léo Feijó! fala, José Fifi). Quem acompanhou, sabe do que estou falando (arrout) ...



Por isso, nem sei se muita gente leu o(s) texto(s), mas sempre me afirmaram por e-mail (fala Zezé) que minhas entrevistas ajudavam a catapultar a outro patamar a audiência do site da festa, que acompanhei desde o iníciozinho até o momento em que me enchi o saco com a porra do cenário bundão carioca. Pois em determinados momentos era literalmente "SO-CO-RRO" mesmo!



De qualquer forma, os textos referentes a esta formação são apenas uma olhadela à distância do que o Fellini, grupo de rock paulistano e não "o cineasta", apresentavam a seu público. Enfim, na condição de apreciador de música não-caretinha, considero que fiz a minha parte. Se alguém do Rio de Janeiro veio a se interessar pelo som inusitado do(s) grupo(s) por meio de meus textos, isso já valeu o meu blá-blá-blá exposto na web. E se você ainda não conhece, quem sabe pode vir a se juntar comigo na improvável próxima empreitada ao vivo do grupo no Rio de Janeiro.



Em determinados momentos, eu sinceramente tenho vergonha do meu texto, mais precisamente da edição de meu texto publicada na Rock Press (Fala, GORDA! MORRA). Mas, de qualquer forma, valeu por determinado período "bobinho" de minha formação de jornalista - e olha que tem coisa alheia muito pior do que este textinho que eu re-publico novamente logo abaixo sem a menor dor-de-consciência pois trampava na brodagem assim como o pessoal da Rolling Stone brazuca dos anos 70 fazia, né Júlia Baleia das comunidades musicais do Orkut? Enfim, divirta-se! Se você ainda não conhece, vale a pesquisa! Principalmente se você considerar que eram os anos, hoje "eram" celebrados pelo apelo à (m)idiopatia generalizada que, naturalmente, estou fora...



TRÊS BANDAS: UM MESMO ESPÍRITO



Fellini, banda paulista formada em 1984, pode ser considerada como paradigma para artistas de rock alternativo no Brasil. Capitaneado pelos jornalistas Cadão Volpato e Thomas Pappon, o grupo lançou quatro álbuns independentes, todos aclamados pela crítica. Em cada um deles, os músicos reinventaram sua proposta sonora, sempre destacando o espírito de liberdade musical. Até o término das atividades, em 91, misturaram influências oriundas desde o rock inglês da época à tradição da canção popular brasileira. Esta última vem da contribuição do vocalista/letrista Cadão, admirador de Noel Rosa e Lúcio Alves, e também um dos melhores letristas surgidos na história do rock brasileiro.



Quase dez anos após o fim da banda, o espírito “felliniano” continua vivo, muito em parte pela aura cult que a banda cultivou no underground em uma época em que o rock brasileiro freqüentava o mainstream. Em 1998, aproveitando as férias de Thomas no Brasil, os músicos se encontraram e reuniram-se para uma pequena turnê em algumas capitais do país. Surpreenderam-se com a acolhida de seus fãs e retornaram no início do ano para uma despedida triunfal no Rec-Beat Festival, realizado em pleno carnaval de Recife. Aproveitamos o afã em cima do Fellini e damos uma panorâmica dos outros projetos dos músicos: o festejado The Gilbertos e o até então inédito Funziona Senza Vapore. Confira! (PS: Alguns anos depois, o grupo reencarnaria em uma formação no Free Jazz Festival em 2001 - é isso mesmo? - em uma noite que contaria com os White Stripes como headliners em show memorável.



Em 84, Thomas Pappon já era veterano na cena paulista, onde tocou bateria nos Voluntários da Pátria. Resolveu tocar baixo e para isso montou o Fellini, junto com Cadão Volpato (voz, gaita, letras e trumpete vocal), Jair Marcos (guitarra) e Ricardo Salvagni (bateria) – todos inexperientes em seus respectivos instrumentos. Com o tempo, esse line up se revezaria nos instrumentos, exceção feita apenas aos vocais sempre a cargo de Cadão. Posteriormente eles também participariam de outros projetos musicais no cenário underground paulistano da época mas, sem sombra de dúvida, o Fellini é o mais incensado entre eles, ao ponto de ainda estarmos falando da banda dez anos após sua dissolução.



No ano seguinte, entraram em estúdio para lançar seu primeiro álbum, O Adeus de Fellini, gravado em oito canais. O título é uma brincadeira com um disco do Duritti Column chamado “The Return of Duritti Column”, como conta o vocalista. “Achamos legal ter um nome de um disco de um grupo que estava começando com um nome de despedida. E esse tipo de piada que pegou nos discos seguintes”.



O álbum, o primeiro dos três lançamentos do grupo pela Baratos Afins, representou bem a primeira fase do grupo, uma mescla de uma influências de bandas importantes da época como o Joy Division, Stranglers e Smiths. É repleto de experimentações, como um “proto-sampler” de “Good Morning” dos Beatles (fase Sergeant Peppers) em “Funziona Senza Vapore”. Já “Outro Endereço, Outra vida” chegou a ser tocada no programa do DJ John Peel (BBC, de Londres) e o grupo aproveitaria a apresentação do radialista como inserção no terceiro disco. É um disco variado, não-sectário, mas com certo clima soturno, apesar do senso humor típico da banda. O disco ainda contém as clássicas “Rock Europeu” e “Nada”.



O segundo disco, Fellini Só Vive Duas Vezes (86), foi gravado na sala de visita de Thomas, em um gravador Tascam de quatro canais. Produzido apenas pelo anfritião e o vocalista, consolida a parceria e é o trabalho mais experimental do Fellini. Destacam-se “Mãe dos Gatos”, “Alcatraz Song” e “Tabu”, nas quais Cadão transborda o melhor de sua verve literária.



“Música não é uma coisa para preguiçosos, cabotinos, lunáticos. É um negócio sério que reflete os esforços humanos para nos tornarmos o que almejamos quando nos manifestamos. O resto é conversa fiada!”. Foi assim que o veterano bluesman Sugar Blue se manifestou aos rapazes na época da gravação do terceiro álbum, Três Lugares Diferentes – o trecho foi incluído como vinheta, assim como a citada participação de John Peel. O LP recebeu forte aclamação por parte da crítica e fez com que recalcados se indispusessem com relação à banda, sugerindo as boas críticas dirigidas ao grupo provinham das relações de amizade que os músicos tinham com seus colegas da imprensa.



Um episódio interessante dessa época é contado por Cadão. O vocalista acha que essas picuinhas apareceram porque o Thomas trabalhava na Bizz e, na época, ele trabalhava na Set, da mesma editora. “As pessoas pensavam que puxávamos a sardinha para o nosso lado. Tanto não é verdade porque há um ano descobri uma história que me deixou muito puto. Houve uma fraude na Bizz em 87, quando fomos escolhidos pela crítica de todo o país como o melhor disco do ano junto com os Titãs, pelo álbum Três Lugares Diferentes. Na verdade, havíamos ganhado isoladamente, mas os caras acharam muito perigoso que ganhássemos sozinhos porque a grita seria muito pior do que acabou sendo. O José Augusto Lemos, diretor de redação da época, admitiu que pegou a votação e falou que não poderia ser. Então fez do jeito dele e deu empate. Naquela época fizeram toda essa encheção de saco quando, na verdade, isso aconteceu porque era uma coisa diferente, tão legal ao ponto das pessoas lembrarem até hoje, dez anos depois”, denuncia.



Preferido pela maioria dos fãs, nesse disco se intensifica uma mescla de ritmos brasileiros com guitarra elétrica – algo como um samba eletrificado. Apresenta algumas músicas muito bonitas, como “Pai” e “Ambos Mundos”, além de refletir uma fase meio cubana do vocalista. “Eu era casado com uma menina que tinha morado durante seis anos em Cuba, então existem várias referências a este país”. “Ambos Mundos”, tida por muitos a melhor canção do grupo, possui uma alusão direta à Cuba na frase “El Caimán Barbudo sentava na própria cauda”, numa alegoria à figura de Fidel Castro, ‘o jacaré barbudo’ retratado na canção. Além disso, o álbum também traz uma referência ao ditador soviético Stalin em “Massacres da Coletivização”. “Teu Inglês”, o maior “hit” do grupo Teu Inglês” também faz parte do disco.



Amor Louco (90) é melhor trabalho da banda e, por outro lado, também o seu canto de cisne até então. Foram prensadas apenas mil cópias na época e é o único álbum ainda não lançado em CD. Nele, o Fellini consolida sua mistura de samba e ritmos eletrônicos e marca a saída do grupo da Baratos Afins, que lançou os três álbuns anteriores. O disco foi lançado pela Wop Bop, uma loja de discos de São Paulo, hoje extinta. “Encontrei o René Ferri (dono da Wop Bop) outro dia e ele me disse que estava muito afim de relançar. Descobri outro dia que existem por aí muitas cópias piratas dele em CD”, fala Cadão. (N.R. arrout: O disco seria lançado no formato CD pela mesma original Wop Bop e quem tem o dito cujo sabe que é bacana).



Amor Louco foi gravado num esquema mais profissional, em vários canais, com um certo tratamento. O título é uma homenagem a Benjamim Perret e ao André Breton, ícones do Surrealismo, algumas das maiores influências para as letras e músicas da banda. Apesar disso, predomina a faceta pop da banda. “Esse disco tem muitas canções pop, embora talvez não seja o mais pop que fizemos”, Cadão avalia o disco. “Amor Louco” contém ainda o sambinha “Chico Buarque Song”, o humor impagável de “LSD” e também “Kandinsk Song” - uma das preferidas do vocalista.



A banda acabou em 91 porque Thomas se mudou para a Alemanha por questões profissionais. Mas história não acaba aí. Capitaneados por Cadão, os remanescentes do grupo formaram outro projeto, batizado de Funziona Senza Vapore (leia abaixo). Por sua vez, a solução que Thomas encontrou para aliviar o tédio e aos saudades do Brasil foi gravar sambas não-ortodoxos. Surge aí The Gilbertos, um novo projeto de Pappon, que só viria a se concretizar em CD no final de 99, com o aval do selo midsummer madness (N.R.: Lariú, amor, você seria um cara mais legal não fosse tão "engajado" ao GreenPeace, verde pra mim é outra coisa).



THE GILBERTOS



Em seu “exílio” europeu, Thomas Pappon aproveitou as folgas de seu trabalho para gravar de forma caseira suas novas composições. Nem todas essas canções fazem parte do CD Os Eurosambas 1992-1998, lançado em 99. Trata-se de um projeto solo, que com a participação de Karla, sua esposa.



O álbum apresenta quase que um upgrade do Fellini. Mas Thomas se mostra tranqüilo com as inevitáveis comparações: “Isso não me incomoda, muito pelo contrário. Nunca pensei muito se isso era ou não uma continuação do Fellini. E também demorou para eu receber o feedback das pessoas porque fiquei oito anos ouvindo sozinho essas fitas, achando do caralho e mais ninguém conhecia. Mas a minha primeira impressão era: “Pô, isso parece Fellini!”. Foi uma coisa que me surpreendeu porque nunca pensei muito nisso”, avalia.



Pappon acena ao passado em “Everywhere”, versão para uma canção inédita do Fellini, chamada “Em Toda Parte”, da fase "final" do grupo. “Ela era cantada em português e o Thomas fez uma versão em inglês basicamente com o mesmo título e as mesmas palavras, uma adaptação para o inglês da letra original”, lembra Cadão.



Thomas também destaca o humor contido em algumas canções e fala de suas prediletas. Entre elas, “Erundina Song”, uma divertida declaração de amor à São Paulo e um dos destaques do álbum. Nela, ele canta que gostaria de fazer uma canção de amor à então ex-prefeita de São Paulo, conforme explica: “Erundina Song é uma coisa tão irônica e ficou perfeito porque virou uma música para São Paulo. Eu acho a Erundina uma pessoa superdecente, a única pessoa decente que apareceu na prefeitura de São Paulo desde que existe prefeitura na cidade. De certa forma, é uma canção de amor à São Paulo, Erundina e às coisas que eu gosto na cidade”, explica.



O mesmo vale para “Le Troix Maries”, releitura de uma antiga canção que Thomas compôs com o grupo Tres Hombres, acrescida de uma nova letra. “Toquei na primeira formação da banda. E tínhamos uma música, que foi a primeira que fizemos e se chamava ‘A Primeira’. E assim que saí da banda, eles abandonaram essa música, mas era uma que sempre gostei. Resolvi aproveitar a melodia, o lance de violão e fiz uma nova letra. Mas a melodia havia sido composta para os ‘Três Hombres’ há, pelo menos, três anos atrás”.



Seu ex-parceiro Cadão dá o parecer do novo trabalho do amigo: “Gosto muito e ouvi muito esse material antes de sair em disco porque faz uns dois ou três anos que ele tem me mandado algumas fitas com esse material. E inclusive tem algumas músicas que achava que tinham que ter entrado no disco, que eu gostava mais. No geral, acho um trabalho muito bacana e acho que existe um elemento de ingenuidade nas letras que talvez eu não tivesse. Mas acho muito positivo porque mostra uma faceta do Thomas que as pessoas em geral desconheciam. Ele parecia ser um cara muito irônico e sarcástico, e acho que essas letras desmistificam isso. Tem ali uma coisa nítida de saudade, de convivência com a mulher, coisas de amor – e acho isso bem bacana. Recomendo!”, avaliza.



Vale ressaltar que a boa repercussão que o álbum de Thomas tem obtido por parte da crítica e do público alternativo instigaram Cadão a desencavar o material do Funziona Senza Vapore, uma prova da convergência musical, ideológica e espiritual entre estes trabalhos.



FUNZIONA SENZA VAPORE



O Funziona Senza Vapore, título de uma das melhores canções do Fellini, foi um projeto dos remanescentes do grupo paulistano (Cadão, Jair e Ricardo) após a ida de Thomas para a Europa, levando o antigo grupo a encerrar as atividades. A eles se juntou Stella Campos, que ficou a cargo dos teclados, além de alguns vocais. Gravaram uma demotape em 93, mas grupo é conhecido pela regravação de uma de suas músicas, “Criança de Domingo”, promovida por Chico Sciense e Nação Zumbi no álbum Afrociberdellia.



Cadão nos conta o episódio: “Cheguei a falar com o Chico algumas vezes e ele realmente gostava muito do nosso trabalho – inclusive sabia algumas músicas de cor. Conhecia o Funziona e o via como um prolongamento natural do trabalho do Fellini”. Esse material do Funziona Senza Vapore caiu nas mãos do caranguejo-mor quando Stella Campos se mudou para Recife e, ao saber da admiração de Chico pelo Fellini, apresentou-o ao Funziona. “Ele conhecia o Funziona e via como um prolongamento natural do trabalho do Fellini. Ele gravou ‘Criança de Domingo’ e, inclusive citou uma letra inteira da banda numa entrevista para a Folha”. Stella, que recentemente lançou um ótimo CD solo chamado Sob um Céu de Brigadeiro, canta uma das músicas do grupo, intitulada “Se Você For, onde você for”.



A master desse material ficou perdida durante anos e, ao achá-la, Cadão fez uma cópia em CD para apresentá-lo à apreciação de algum selo. Rodrigo Lariú, (midsummer madness) se interessou e pretende que o Funziona seja seu próximo lançamento. Vamos esperar! PS: (O álbum acabou sendo lançado pela Outros Discos e é discoteca básica para qualquer um que se aventure nos subterrâneos dos anos 80).



O ADEUS DE FELLINI



O Fellini fez seu último show no Rec-Beat Festival, realizado em Recife (N.R.: ainda não havia acontecido o show na última edição do Free Jazz Festival). Mas isso não quer dizer que o grupo esteja voltando às atividades, já que a distância entre os integrantes impossibilita a retomada dos trabalhos. De qualquer forma, os integrantes ressaltaram a possibildade de um álbum com outtakes e canções ao vivo, que estão sendo compiladas por Thomas. Isso mostra que a saga felliniana ainda não acabou, ainda mais pelo fato de Pappon ter revelado sua vontade de voltar a morar no Brasil. Ironia da história: se eles já disseram adeus logo no primeiro álbum, não seria agora que você iria acreditar. Nem morta, affe tô tão cansada!



Abaixo seguem as entrevistas com Cadão Volpato e Thomas Pappon! Divirta-se, é claro, se você não for baleia! Se você for baleia, sugiro que clique em http://www.greenpeace.org! Uiuiuiui!



FELLINI – OS GILBERTOS


ENTREVISTA COM THOMAS PAPPON



O SOM DA MÚSICA - Você concorda que o seu trabalho com o The Gilbertos é uma continuação natural do que você fazia com o Fellini, algo como seria a banda se ela estivesse na ativa atualmente? Eu também gostaria de saber se esse tipo de comparação te incomoda?




THOMAS
: Não isso não me incomoda, muito pelo contrário – mas nunca pensei muito se isso era ou não uma continuação do Fellini. E também demorou para eu receber o feedback das pessoas porque fiquei oito anos ouvindo sozinho essas fitas, achando do caralho e mais ninguém conhecia. Mas a minha primeira impressão era: “Pô, isso parece Fellini!” – e foi uma coisa que me surpreendeu porque eu nunca pensei muito nisso.



Mas me orgulho disso, afinal eu tinha um papel importante dentro do Fellini: era eu quem cuidava da direção musical, fazia a maior parte das músicas, as melodias. E sei que essa comparação tem a ver mais com o lado musical, e não pelas letras. Porque acho que por mais que eu me inspirasse no jeito do Cadão cantar, eu jamais vou chegar perto do que ele fazia como letrista – acho ele simplesmente o maior letrista do Brasil.



Na minha opinião, ele e o Renato Russo foram fundamentais para a história do rock brasileiro nos anos 80. Quer dizer, o Russo evidentemente teve uma penetração muito maior, mas acho que o Cadão, no que concerne ao underground, estabeleceu parâmetros.



O SOM DA MÚSICA - A saudade pelo Brasil é latente no seu trabalho, você vê a possibilidade de voltar ao Brasil num futuro próximo e retornar com a parceria com o Cadão?



THOMAS: ... (pensativo) Desde que eu mudei para a Europa, quando chega o inverno, eu morro de saudades do Brasil (rindo) – e a minha mulher, também. Mas acho que vai chegar uma hora... O tempo está passando, a minha idéia era ficar dois anos e eu já estou lá há nove anos. Mas acho que um dia irei voltar, acho que daqui há dois ou três anos, porque a minha mulher está grávida e isso vai adiar um pouco os planos.



Profissionalmente, estou bem em Londres, mas adoraria voltar a fazer alguma coisa com o Cadão – e ele também, tenho certeza. O Cadão tem a mesma paixão que eu tenho pelo Fellini.



O SOM DA MÚSICA - Apesar dele ter mencionado numa entrevista a impossibilidade de volta da banda.



THOMAS: Pois é, a vontade existe, mas eu sou muito pragmático: estou morando em Londres, uma mudança para o Brasil seria supercomplicada, tem o lance de emprego, medo ... tantos fatores envolvidos. E, de certa forma, voltar com o Fellini não vai ser a minha primeira preocupação ao retornar ao Brasil – e sim, arrumar um bom emprego, modos de subsistência.



Mas, pelo amor que tenho à música – e duvido que isso irá parar tão cedo – e também pelo fato de o Cadão também curtir essa idéia, existe sempre essa possibilidade.



Três anos atrás, eu sequer vislumbraria a possibilidade de voltarmos a tocar juntos. E a idéia maluca “de fazer um som” durante as minhas férias no Brasil, em 98, acabou originando uma turnê que o Fellini nunca fez. Fizemos três shows em duas semanas, Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo em coisa de cinco dias... aquela coisa de aeroporto, fãs pedindo autógráfos – isso é uma realidade que nunca vivemos nos anos 80 e que estamos vivendo dez anos depois (rindo).



Mas as coisas estão rolando, é interessante, mas eu não sei, tem muita sorte envolvida no meio – sorte, no sentido de coisas que vão acontecendo.



O SOM DA MÚSICA - O CD dos Gilbertos tem tido uma boa repercussão por aqui, chego a dizer que é a melhor em se tratando de um lançamento do midsummer madness, eu gostaria de saber se lá fora você tem algum retorno do seu trabalho?



THOMAS
: Uma das coisas que eu vim fazer aqui no Brasil foi pegar uns CDs para levar para a Inglaterra, porque eu só tenho o meu (rindo), que o Lariú me mandou pelo correio. Para você ter uma idéia, os meus melhores amigos na Inglaterra não conhecem Os Gilbertos ainda, porque eu estou esperando os CDs e não vou mandar uma fita cassete.



E evidentemente, eu vou mandar para umas cinco ou seis gravadoras de uma praia, de um tipo de música que podem vir a se interessar. Por exemplo, a gravadora do Stereolab – inclusive eu os conheço, eles moram perto da minha casa; também conheço muito bem o Shannon, dos Highlamas – essa patota aí, pelo fato deles adorarem música brasileira e, principalmente, as coisas mais esquisitas da música brasileira: Mutantes, Jorge Ben, etc.



E eles gostam bastante de coisas “low fi”, não dão muita importância para um p*ta som. Se uma coisa tem sentimento, está bem resolvida e dá para lançar – os caras topam. São gravadoras desse tipo, e eu vou ver o que acontece.



Eu não tenho intenção nenhuma de fazer shows, isso eu vou deixar bem claro para todo mundo, eu não tenho a mínima condição de formar banda – a não ser, como eu já falei antes, que o povo vá às ruas exigir shows dos Gilbertos. E aí, quem sabe?



O SOM DA MÚSICA - Antes do Lariú abarcar esse teu projeto, a Luaka Bop (N.R.: o selo do David Byrne, ex Talking Heads) se mostrou interessada. Por que isso acabou não dando em nada? Eles estavam satisfeitos em já ter um brasileiro (N.R.: este selo lança no exterior álbuns do Tom Zé) no cast/br>


THOMAS
: Pois é, esse episódio foi um dos mais felizes e mais tristes da minha vida também. Eu estava em Londres em 93, passando duas semanas férias hospedado na casa do meu amigo Nick Cave... Aí no final das férias, eu peguei os recados na secretária eletrônica e tinha lá, em inglês: “Oi Thomas, aqui é o Yale, da Luaka Bop, nós gostamos muito da sua fita e gostaríamos que você nos mandasse mais material porque estamos a fim de lançar ...”.



Eu não acreditei porque o sonho da minha vida era lançar alguma coisa lá fora, ainda mais pela Luaka Bop, que é uma gravadora que eu respeito pra kct. Aí eu fiquei todo empolgado e, na mesma noite em que eu cheguei em Londres, eu liguei para o cara e falei que iria mandar algumas coisas. Preparei uma fitinha, um press release enorme... E isso foi um erro, porque você tem sempre que manter um certo mistério em torno da coisa toda, nunca entregar o jogo todo.



E passou um tempo e ele não respondeu. Aí eu liguei e ele estava meio assim (faz cara de desanimado), eu mandei outra fita... e aí recebi uma cartinha com duas linhas: “Thomas, nós gostamos mesmo foi da primeira fita. Mas valeu, e bla bla bla...”. Aí eu fiquei uns dois meses pensando “onde é que eu errei?” e... bobagem.



A fita que eu mandei para ele tinha três músicas. Abria com “Everywhere”, tinha “Jimi Scott”, e fechava com “Polly” - todas como estão no disco.



O SOM DA MÚSICA - Soube que tinha uma releitura para um standard da música brasileira. Se não me engano era do Baden Powell.



THOMAS
: Não, essa foi numa segunda fita que mandei para eles, que tinha “Samba e Amor”, do Chico. Eu cheguei a gravar uma outra versão de “Berimbau” do Baden Powell, mas acho que não mandei para eles. Mas foi com essa outra fita que a coisa broxou (rindo).



O SOM DA MÚSICA - Você considera o seu trabalho um upgrade da MPB, já que a atual soa um tanto estática, anacrônica e estratificada?



THOMAS
: Sempre me pergunto se o meu trabalho, seja com o Fellini ou com Os Gilbertos, se se encaixa mais com MPB ou mais com a tradição do rock ou do pop. Isso porque, durante a minha vida inteira, eu sempre ouvi rock. Isso sempre foi o meu grande lance. Eu ouvia MPB, mas a fórmula que eu uso para fazer música, o que me interessa, tem tudo mais a ver com as fórmulas do rock: a energia, a tensão, etc. Então, acho que se enquadra mais no rock.



Mas eu não sei. Talvez (interrompe)... isso é difícil, mas o legal dessas coisas é justamente porque fica nesse tênue linha entre MPB e rock. Talvez seja nesse fato que consista a coisa interessante da nossa música: da minha, da do Cadão ou do Fellini. Eu realmente não sei, a MPB está num marasmo?



O SOM DA MÚSICA - Bastante, pelo menos o que conhecemos como MPB.



THOMAS
: Sei, mas está num marasmo há um tempão. Eu só tenho interesse nos anos 60 e 70, porque nos 80 e 90, só as coisas mais ligadas à raíz – tipo o Mestre Ambrósio, Cascabulho – que acho do caralho. Marisa Monte também é legal, assim como o Carlinhos Brown – apesar de todo mundo, os críticos, detestarem... Poxa, eu vi um show dele em Londres e fiquei bobo.



Acho que você tem razão, mas não sei. Ë um produto independente, então acho que não vai ter a menor influência sobre a MPB – ainda mais por ser lançado pelo midsummer madness, que é um selo totalmente identificado com o rock alternativo.



O SOM DA MÚSICA - As minhas músicas favoritas nesse teu novo trabalho são “Le Troix Maries” e “Erundina’s Song” (Thomas ri). Nessa última, você fala que gostaria de fazer uma canção de amor para ela. Gostaria de saber das suas motivações para essa canção.



THOMAS
: (rindo) Obviamente essa música é sobre São Paulo e é uma declaração de amor à cidade – e não, para a Erundina. Eu estava num ônibus, indo para o trabalho e estava pensando numa letra – e me lembro exatamente até da curva que o ônibus fez quando pensei na frase “quero fazer uma canção de amor...”



Aí veio essa “para a Erundina” porque a melodia tem uma pequena pausa e todo mundo deve esperar “pô, o cara quer fazer uma música para a mulher dele ou para uma mulher bonita”, aí vem o “para a Erundina” (rindo).



E eu acho que é uma coisa tão irônica, tão engraçada, que ficou perfeito porque aí virou uma música para São Paulo porque continuo a falar da cidade. Mas não é, tive nenhuma intenção de fazer uma canção de amor para ela, nem nada disso.



Mas, talvez sim! Eu a acho uma pessoa super-decente, a única pessoa decente que apareceu na prefeitura de São Paulo desde que existe prefeitura em São Paulo. E eu sempre fui petista e, de certa forma, é uma canção de amor à São Paulo, Erundina e às coisas que eu gosto na cidade.



E “Le Troix Maries” tem uma história interessante. Aliás, você vai ser o primeiro jornalista para quem vou revelar essa história. Você conhece um grupo chamado “Três Hombres”? Já ouviu falar?



O SOM DA MÚSICA - Sim.



THOMAS
: Pois é, eu tocava na primeira formação da banda. E tínhamos uma música, que foi a primeira que fizemos, que se chamava “A Primeira”. E eu fiz essa música e tal.



O SOM DA MÚSICA - A banda chegou a participar do Sanguinho Novo: Tributo ao Arnaldo Baptista (N.R.: fala, Leleco, sumo-sacerdote da putaria! Uarapumbara, rou!



THOMAS: Mas eu não era dessa formação, eu já havia saído.



O SOM DA MÚSICA - Você, inclusive, participou com o Fellini, com a música “Você Tá Pensando Que Eu Sou Lóki?”.



THOMAS
: E essa música dos “Três Hombres”, “A Primeira”, eu fiz a música e o cantor, o Daniel, fez a letra. E assim que eu saí da banda, eles abandonaram essa música também, mas era uma que eu sempre gostei. Então resolvi aproveitar a melodia, o lance de violão, fiz uma letra – mas a melodia havia sido composta para os “Três Hombres” há, pelo menos, três anos atrás.



E, coincidentemente, sao justamente essas duas músicas as que eu mais gosto no disco, sem dúvida nenhuma. Principalmente, “Le Troix Maries” , que é supersimples: um violãozinho, vozes bem-colocadas.



O SOM DA MÚSICA - Em “Baby’s Not Home” percebe-se uma alusão a “Teu Inglês”, do Fellini. Isso procede? Você fica repetindo “please, come back...” a partir de um determinado momento.



THOMAS
: Eu acho isso emocionante quando entra o “please, come back...”, para os fãs do Fellini que escutaram a música e entendem o inglês – do fato da minha mulher ter sido garçonete e eu ficar em casa de noite, sozinho, esperando-a voltar do trabalho, sem ter com quem conversar... Tudo isso está nessa letra.



“No inverno alemão, eu ía da cozinha para sala, do quarto pra cozinha, da cozinha pra sala, do quarto pra cozinha... Olhava pela janela: ‘pô, a minha mulher não vem’...” E é aí que entra o “please come back”, é claro. É lindo e caiu como uma luva. Sem dúvida. Sem falar que “O Teu Inglês” é uma das melhores músicas do Fellini.



O SOM DA MÚSICA - A minha preferida é até uma de um disco que você já ressaltou que sente um certo desconforto com relação a ele. Essa música é a “Ambos Mundos”, do álbum Três Lugares Diferentes.



THOMAS
: Pois é, ela é bem legal.



O SOM DA MÚSICA - Antes dos Gilbertos você havia escrito pouquíssimas letras. Você teve alguma dificuldade para começar a escrevê-las. Ou chegou a pensar em chamar alguém para fazê-las? Ou como era uma coisa informal, você mesmo decidiu escrevê-las?



THOMAS
: Primeiro, eu acho que as músicas teriam que ter letras. Em música pop, fica muito difícil de você passar o recado só com o instrumental. Então, foi meio que uma tarefa: “Eu tenho que fazer isso!”



E, para mim, foi muito complicado porque o meu problema é não saber o que dizer. Acho que, na verdade, isso é o problema de muitas bandas brasileiras – muita gente canta em inglês por causa disso, eu mesmo fazia muitas delas por essa razão. Isso porque em inglês é muito mais fácil: você fala qualquer coisa e, foda-se.



O SOM DA MÚSICA - Tem até o caso da “Smells Like Teen Spirit” (rindo).



THOMAS
: Pois, é (rindo). Mas, em português, você sabe que tem que dar um recado – que a moçada vai ouvir, vai querer saber do que você está falando e... Enfim, as minhas primeiras letras foram assim (faz cara de quem está fazendo um grande esforço): eu escrevia, escrevia... não gostava e aí tinha que escrever novamente.



Hoje acho que as letras são legais, mas tive uma puta dificuldade para fazer e volto a citar o Cadão, que é um talento natural. Com ele, as coisas fluem.



O SOM DA MÚSICA - O que você achou dos dois livros lançados por ele?



THOMAS
: Acho que todo mundo deveria ler. Ele é espetacular.



O SOM DA MÚSICA - Queria que você falasse do projeto de lançar outtakes do Fellini. O Cadão até falou recentemente que achou uma fita com um material bem legal da banda.



THOMAS
: Todas as coisas que o Fellini gravou estão comigo lá em Londres, exceto uma fita de um dos últimos shows do Fellini antes de eu ir para a Europa, no Teatro Ipanema. E o Cadão tem essa fita, ele havia perdido essa fita e estava tentando encontrá-la. E agora, vou à São Paulo pegar esse tape. Estava esperando juntar tudo para, depois, começar a ouvir, selecionar ... Mas eu posso adiantar que temos outtakes – coisas que gravamos em algumas sessões, mas que não foram lançadas, e não é muita coisa: umas três ou quatro músicas boas com uma qualidade legal, no máximo. Também tem muita coisa ao vivo.



O SOM DA MÚSICA - Qual a previsão de que isso seja lançado?



THOMAS
: Não sei, porque o Lariú não tem grana para lançar muita coisa. Mas agora, por causa dessa repercussão dos Gilbertos, o Cadão quer lançar o Funziona Senza Vapore (rindo). É uma banda que ele tinha lá por volta de 83, com os outros caras do Fellini e a Stella Campos. Gravaram uma demo e depois a banda acabou. Ele encontrou a master da demo, ouviu junto com o Ricardo e eles avaliaram que dava para lançar porque ainda está super-moderno. Ele quer mandar para o Lariú, e este me avisou que seria uma coisa ou outra e falou que estava afim de lançar o Funziona. Concordei porque, até eu selecionar as músicas, isso vai demorar alguns meses. E o Funziona é muito legal, tem que ser lançado agora.



O SOM DA MÚSICA - Até porque tem que se trabalhar isso direito, até no que diz respeito à parte gráfica, como é o exemplo do CD dos Gilbertos.



THOMAS
: Claro, sem dúvida nenhuma. Mas eu não sei se será pela midsummer madness porque eu gostaria que o Calanca (dono da Baratos Afins) lançasse o Fellini, afinal ele lançou os primeiros três discos. Mas o Calanca é tão murrinha (rindo), tão chato... Ele fica chorando, fazendo uma onda.



Para ele comprar CDs dos Gilbertos pra vender na loja dele, fez a maior onda. O Lariú me falou que, aqui no Rio, várias lojas compraram caixas de 25 CDs – enquanto o Luíz só comprou dez CDs e ainda ficou chorando pelo preço, um preço super-ridículo. Ora, vai tomar no cu (rindo)!



O SOM DA MÚSICA - Então isso também, quer dizer que, se não fosse a empreitada do Lariú, dificilmente o seu trabalho com os Gilbertos viria à tona.



THOMAS
: Com certeza, eu já tinha desencanado totalmente. Havia falado com o Lariú que eu tinha umas fitas que eu adorava. Inclusive, dos meu discos, esse é o que eu mais gosto. E eu perguntei se ele estava interessado. Eles respondeu que sim, eu mandei a fita... e o resto é história: ele gostou e lançou.



O SOM DA MÚSICA - Quando você estava falando sobre as outtakes, você falou de um show que vocês fizeram no Teatro Ipanema. E, inclusive, na época, a Lorena Calábria havia resenhado o show, ironizando: “Será que o Fellini toca mal porque faz poucos shows ou faz poucos shows porque tocam mal?” Você lembra disso? Isso causou algum ressentimento ou você concorda com as motivações que ela teve para escrever aquilo?



THOMAS
: Lembro (rindo). Cara, o Fellini sempre foi um problema ao vivo. Fizemos tantos shows ruins, dos quais me arrependo tanto. Algumas lembranças tão ruins e... eu não sei o que dizer (aborrecido).



Tínhamos muitos problemas técnicos e isso é verdade. Não estou falando isso para defender ou nada, mas usávamos ritmos eletrônicosnos anos 80 e ninguém sabia equalizar naquela época. Então, íamos para São Carlos, tocar em faculdades, um monte de fãs lá... colocávamos os ritmos eletrônicos e era uma merda porque ninguém ouvia nada.



O SOM DA MÚSICA - Rolava problemas de impedância nos aparelhos.



THOMAS
: É. Você viu os shows recentes e acho que o Fellini tem condições de fazer bons shows. Mas, de fato, nos anos 80 – eu não sei (rindo). Não sei o que dizer simplesmente (constrangido).



O SOM DA MÚSICA - Queria que você falasse sobre como a música européia influenciou a sua forma de fazer MPB.



THOMAS
: Totalmente. A minha primeira influência sempre foi a música européia, o rock europeu. E eu ainda gosto, sempre fico ouvindo bandas novas. Mas acho que o que você se referiu tem mais a ver com a forma de se fazer as coisas, porque eu tenho o interesse de continuar com um pé na MPB. Eu geralmente parto do samba. Nesse disco, todas as músicas começaram com batidas programadas no compasso 2/4. Depois eu abstraía, mas sempre começava nesse ritmo. E quanto ao resto, a forma de fazer música é totalmente influenciada pelo rock europeu – bandas principalmente da minha geração, do pós-punk, tipo o Gang Of Four, Stranglers, The Fall, Joy Division.



Segue a entrevista com Cadão Volpato, ex-Fellini e Funziona Senza Vapore.


O SOM DA MÚSICA - Como foi o show que vocês fizeram no Carnaval deste ano em Recife?



CADÃO
: Foi muito legal, para nós foi muito significativo porque nenhum de nós conhecia Recife e tinha aquela história de que o pessoal do mangue beat escutava bastante o Fellini. Quer dizer, de fato rolava uma tremenda identidade da cidade com a gente e o show foi bem legal. Conheci a irmã do Chico Sciense, reencontrei o Fred Zero 4, vi algumas coisas boas lá na cidade. Mas foi uma volta festiva, nos encontramos só para tocar lá mesmo. Não houve outra intenção e foi muito legal porque provavelmente não iremos mais nos encontrar para tocar, então dá pra dizer que o último show do Fellini foi numa cidade que nos acolheu muito bem. Uma cidade que está há três horas de avião de São Paulo e, no entanto, o pessoal do mangue beat ouvia e se diziam influenciados por nós.



O SOM DA MÚSICA - Inclusive o Chico Sciense & Nação Zumbi chegou a gravar uma música sua, “Criança de Domingo”, no Afrociberdelia.



CADÃO
: Pois é, uma música minha e do Ricardo. Eu cheguei a falar com o Chico algumas vezes e ele sempre foi muito simpático. Ele realmente gostava muito do nosso trabalho e, inclusive, sabia algumas coisas de cor. Esse material do Funziona Senza Vapore é um trabalho em que a Stella Campos também participava. E ela levou essa fita quando foi foi morar no Recife, era um trabalho em que fizemos uma demo de muito boa qualidade e foi aí que o pessoal ficou conhecendo o trabalho do Funziona Senza Vapore. Ele gravou “Criança de Domingo” e, inclusive citou uma letra inteira da banda numa entrevista para a Folha de São Paulo. Ele conhecia o Funziona e via como um prolongamento natural do trabalho do Fellini.



O SOM DA MÚSICA - O trabalho do Thomas com os Gilbertos revela uma latente saudade do Brasil. Sei que você já mencionou em entrevistas a de volta da banda. Queria saber se você vê a possibilidade de, pelo menos, retomar a parceria com ele?



CADÃO
: A única possibilidade seria se ele voltasse para o Brasil. Não tenho a menor pretensão de morar em Londres e acho que ele está muito bem lá trabalhando na BBC. Acho que o contato físico é fundamental, não sei se a coisa funcionaria se fizéssemos o trabalho à distância. Inclusive, conversamos sobre essa possibilidade. Eu estava até com vontade mas desencanei porque acho que ficaria difícil por causa da distância.



O SOM DA MÚSICA - “Everywhere” é uma adaptação de uma canção do Fellini. Como rolou essa retomada da “parceria” com o Thomas? Vocês chegaram a tocá-la ao vivo em 98?



CADÃO
: Nunca tocamos essa música ao vivo. Ela se chamava “Em Toda Parte”, não me lembro se chegou a ser gravada, mas ela faz parte do último repertório do Fellini, em 89 ou 90, uma das últimas canções que compusemos juntos. Ela era cantada em português e o Thomas fez uma versão em inglês basicamente com o mesmo título e as mesmas palavras, uma adaptação para o inglês da letra original. A letra fala basicamente dos mesmos temas que ele fala agora no CD dos Gilbertos.



O SOM DA MÚSICA - Mas acaba sendo uma parceira informal entre vocês.



CADÃO
: Do ponto de vista melódico, as parcerias funcionavam assim de uma forma geral. Ele vinha com uma base de violão e eu colocava uma linha vocal, então dá pra se dizer que existe aí também existe uma parceria melódica. Mas acho que essa música trouxe alguma coisa um pouco mais acabada. Não consigo me lembrar direito porque já faz dez anos, mas acho que ele trouxe uma coisa um pouco mais elaborada. Quando eu fiz a letra original em cima da harmonia, eu segui a melodia que ele havia feito, e talvez agora ele tenha feito uma mudancinha ou outra. Mas isso era uma coisa meio atípica em nosso método de composição. Acho que pode se dizer que existe da minha parte uma pequena participação melódica, e a letra é minha com uma tradução feita pelo Thomas.



O SOM DA MÚSICA - O que você achou dos Gilbertos? Você considera isso como um upgrade do trabalho do Fellini? Chego a dizer que sua influência é evidente no trabalho do Thomas como letrista?



CADÃO
: Gosto muito e ouvi muito esse material antes de sair em disco porque faz uns dois ou três anos que ele tem me mandado algumas fitas com esse material. E inclusive tem algumas músicas que eu achava que tinham que ter entrado no disco, que eu gostava mais. No geral, acho um trabalho muito bacana, acho que existe um elemento de ingenuidade nas letras que talvez eu não tivesse. Mas acho isso muito positivo porque mostra uma faceta do Thomas que as pessoas em geral desconheciam. Ele parecia ser um cara muito irônico e sarcástico, e acho que essas letras desmistificam isso. Tem ali uma coisa nítida de saudade, de convivência com a mulher, coisas de amor – e acho isso bem bacana. Gosto muito de ouvir.



O SOM DA MÚSICA - Vocês fizeram alguns shows no final de 98 que tiveram uma repercussão bem legal. E gostaria de saber se você concorda com a nostalgia e a exaltação ao Fellini quase uma década depois do fim da banda? Te digo isso até porque várias bandas, que posteriormente se tornariam influentes, idolatram vocês. E eu queria saber se, naquela época, você já a noção de que o trabalho do Fellini teria essa longevidade.



CADÃO
: Tem uma entrevista que o Thomas deu para a Bizz naquela época, em 88 ou 89, que foi meio profética. Ele falou em tom de brincadeira, mas está escrito lá: “Dentro de cinco anos nós vamos virar cult”.



Estávamos meio de saco cheio, queríamos gravar músicas num esquema um pouco mais sofisticado. Isso porque sempre gravamos no esquema independente, quer dizer, nunca gastamos dinheiro mas também nunca ganhamos nada. Então queríamos fazer uma coisa alternativa, mas em um esquema mais profissional e que nos preservasse a liberdade de criação. Isso nunca aconteceu, mas naquela época estávamos meio saturados e acho que isso também contribuiu para o fim da banda. Mas na verdade, foi pelo fato do Thomas saído do Brasil.



Naquela época ele falou isso, mas acho que não tínhamos muito essa noção. Fazíamos o que queríamos e acho ali devia existir um pouco desse tipo de coisa com certeza porque isso não sobreviveria tanto tempo com quatro discos independentes. Existem toneladas de discos independentes que sairiam naquela época e que no entanto não possuem essa lembrança que acabamos deixando. Acho que tínhamos uma postura legal, mais divertida com relação à música. E também acho que, fundamentalmente, fizemos músicas legais, que ficaram. Acho que eram esse espíríto e essa postura que atraía as pessoas. Mas não tínhamos consciência de que viraríamos uma banda cult, acho que o Thomas chutou ... e acertou (rindo). Ele sempre falava alguma coisa desse tipo naquela época, ele tinha esse tipo de visão. É engraçado, mas ele acabou acertando.


O SOM DA MÚSICA - Me fale um pouco do projeto de lançar outtakes do Fellini. Numa entrevista para a TV você até falou que achou uma fita com um material bem legal da banda.



CADÃO
: Essa fita era do Funziona. Achei realmente essa fita que havia se perdido, essa demo que foi levada pra Recife e que o pessoal do mangue beat ouviu. Eu tinha um vídeo-cassete que tinha quase que uma definição de DAT (digital audio tape), naquela época se fazia isso. O original foi gravado nesse formato e, como não tinha identificação, ficou perdida no meio das minhas coisas – até eu tê-la achado recentemente. Aí fiz uma cópia em CD, com uma p*ta qualidade de som. Então, eu tenho um CD pronto, o problema é que eu não acho selo para lançá-lo.



Fiz uma consulta à midsummer madness e o Lariú não me respondeu, então não tenho a menor idéia do que ele pensa em fazer. Por outro lado, eu também não sei o que pretendo fazer. Mundo alternativo tem isso, as pessoas andam muito devagar. E, de certa forma, dei uma desencanada. Não é necessário lançar, não acho que seria essencial para o destino do mundo (rindo). Acho que é só uma diversão e talvez as pessoas tivessem o interesse em ouvir porque foi um trabalho feito em 92 pelos três remanescentes, sem o Thomas e com a participação da Stella – então esse trabalho já tem oito anos, a exceção é uma música completamente nova que eu gravei sozinho nesse CD.



É um produto pronto, acabado, só falta um selo pra lançar. Então, quem sabe, um dia a gente lance... A Stella canta uma das músicas, “Se você for, onde você for”, uma composição minha. Na verdade, todas as músicas são minhas, é uma coisa meio diferente porque eu sempre compus com o Thomas. Mas, nesse disco, todas as músicas são minhas, a exceção de “Criança de Domingo”, que eu fiz com o Ricardo. Essa música saiu numa jam e depois eu fiz a letra.



Então é quase um CD solo, mas com a participação de todas essas pessoas. A Stella toca teclados, faz alguns vocais e backing vocais. As guitarras ficaram a cargo do Jair Marcos, bateria eletrônica em todas as músicas, o Ricardo toca baixo, eu toco violão e faço quase todos os vocais. A Stella faz alguns vocais, um comigo e outro sozinha – e todos os backings são feitos por ela e o Jair. O Lariú ainda não entrou em contato comigo, então não tenho a menor idéia do que ele está pensando. Gostaria muito que saísse pelo midsummer, ainda mais porque ele lançou Os Gilbertos e achei que era um selo distinto, bacana, com uma cara que eu acho legal – do tipo faz 500 cópias e vende. Me interessa uma coisa completamente alternativa, esse é o espírito. E o disco tem bem essa cara alternativa, mas também tem um certo apelo pop. Pelo menos é o que eu achava.



O SOM DA MÚSICA - Sobre os outtakes, quando entrevistei o Thomas ele falou da gravação de um show que vocês fizeram no Teatro Ipanema no início dos 90. E, inclusive, na época, a Lorena Calábria havia resenhado este show, ironizando: “Será que o Fellini toca mal porque faz poucos shows ou faz poucos shows porque tocam mal?” Você lembra disso? Isso causou algum ressentimento ou você concorda com as motivações que ela teve para escrever aquilo?



CADÃO
: Inclusive essa fita havia desaparecido. Não rolou ressentimento porque logo depois eu casei com ela (rindo), pra você ter uma idéia. Fomos casado por quatro anos e isso foi uma questão que nunca esclarecemos em nosso relacionamento (rindo). Talvez ela tivesse razão porque no Fellini nós nunca nos encontramos muito para ensaiar, não éramos exímios músicos. Nós tínhamos um puta baterista que era o Thomas, mas ele tocava guitarra – e quer dizer, era o que podíamos fazer. Não acho que os shows eram ruins, eles tinham uma cara diferente do que se fazia naquela época, em que as pessoas se empenhavam para passar uma imagem de artistas sérios e depois faziam aquele solo de guitarra. Não fazíamos nada disso, chegávamos lá e mandávamos ver. Era tão diferente e, hoje em dia, acho que estava um pouco a frente do seu tempo. Me refiro à postura com relação à música. Hoje em dia o Lobão está lançando um produto alternativo. Era um pouco diferente e acho natural que as pessoas esperassem um show, mas o que ela viu ali foi um pouco disso: o Fellini como ele era, sem muita máscara – e talvez ele parecesse um pouco amador. Esse show que fizemos em 98, nós mal ensaiamos, e talvez tenham sido os melhores shows que já fizemos. Foram muito legais e, em nenhum momento, ninguém tocou nesse ponto de amadorismo. É engraçado, mas tínhamos um pouco essa cara de que era uma coisa meio amadora. Tinha a ver um pouco com esse espírito.



O SOM DA MÚSICA - Queria que você falasse um pouco das picuinhas que rolavam com o pessoal de outras bandas pelo fato do Fellini ser bastante incensado pela crítica paulista, como se fosse coisa de panelinha. Isso chegou a incomodar? Ou esse negócio de cult band é invenção de jornalistas?



CADÃO
: Essas picuinhas que rolavam na época eram mais por ciúme. Primeiro porque nao éramos muito integrados ao ambiente, à grande panela que era o rock paulista ou muito menos ao rock carioca daquela época. Achávamos o rock carioca um lixo, mas o Thomas chegou a produzir o Black Future, grupo cujo disco teve a menor vendagem da história da gravadora (rindo).



Era uma grupo legal, que tinha algumas coisas bacaninhas, mas confesso que no Rio não ouvi nada que naquela época me tivesse despertado grandes amores. Vou te confessar que não era fã em primeiro grau de Picassos Falsos ou Hojerizah, esse tipo de coisa nunca me animou muito – mas acho que era um pouco sectário da nossa parte, muito provavelmente. Agora acho que essas picuinhas apareceram porque o Thomas trabalhava na Bizz, eu também sou jornalista e na época trabalhava na Set, uma revista de cinema encostada na Bizz, então as pessoas pensavam que nós puxávamos a sardinha para o nosso lado. E eu te digo com toda a sinceridade que isso não era verdade.



Tanto não é verdade que há um ano descobri uma história que me deixou muito puto: Em 87, quando fomos escolhidos pela crítica de todo o país como o melhor disco do ano junto com os Titãs, com o Três Lugares Diferentes, descobri recentemente que houve uma fraude na Bizz e que, na verdade, tínhamos ganho isoladamente mas os caras acharam muito perigoso que ganhássemos sozinhos porque a grita seria muito pior do que acabou sendo porque os Titãs ficaram putos e etc. E na verdade, ganhamos sozinhos – o melhor disco do ano, dá pra acreditar (rindo)? – e os caras forjaram.



O José Augusto Lemos, diretor de redação da época, admitiu que ele pegou a votação e falou “não vai ser assim”, fez do jeito dele e deu empate. Você imagina? Eu tenho razão pra estar p*to. Naquela época fizeram toda essa encheção de saco quando na verdade... Por que? Porque era uma coisa diferente, legal, tão legal que as pessoas lembram até hoje, dez anos depois. Posso te garantir que não faço a menor força para aparecer, sempre tem alguém me procurando para falar disso. E sabe por que existem muitos jornalistas atualmente que curtem a banda? Porque eles eram jovens naquela época, tinham 15 anos, é uma geração que hoje está militando no jornalismo cultural e que naquela eram só compradores de discos, fãs que estavam por aí e gostaram do disco do Fellini e tiveram um contato com a banda super-saudável. Viram que o espírito da banda era uma coisa mais à vontade, acho que é por isso: muita gente que viu e gostou.



O SOM DA MÚSICA - Queria que você fizesse rápidos comentários sobre os quatro discos do Fellini e sobre as músicas que você mais gosta em cada um deles.

CADÃO
: O primeiro foi O Adeus de Fellini e se chamou assim por várias razões, nós chegamos até a discutir sobre isso várias vezes. Em primeiro lugar, havia um disco do Duritti Column que eu gostava muito chamada The Return of Duritti Column. Fizemos uma brincadeira com isso e achamos legal ter um nome de um disco de um grupo que estava começando com um nome de despedida. E esse tipo de piada que pegou nos discos seguintes. Em geral ele foi todo gravado em um estúdio de oito canais, talvez tenha sido a melhor produção que tivemos. Não, quer dizer, foi do Amor Louco.



Ele representou bem a primeira fase do grupo, é uma mescla de uma influências de bandas importantes da época como o Joy Division, Smiths... e só tinha experimentações. Nós colocamos um negócio que acabou funcionando como sampler, roubamos um pedacinho de uma música do Sergeant Peppers que tem um galo cantando e colocamos na música “Funziona Senza Vapore”. Inclusive na minha opinião, ela é a melhor do disco. A música “Outro Endereço, Outras vidas” chegou a tocar no programa do John Peel e a apresentação dele entrou como uma inserção no terceiro disco. Acho que é um disco variado, não é tão sectário, mas tem um certo clima soturno. Ele já mostrava que tinhamos uma cara engraçada.



O segundo disco é os que eu gosto mais, foi gravado na sala de visita do Thomas em quatro canais num Tascam, que hoje em dia qualquer um tem. O disco tem até um guarda noturno entrando no meio. Eu e o Thomas gravamos e foi ótimo. Fizemos as músicas, gravamos do jeito que quisemos e foi aí que a parceria se consolidou. Pra você ter uma idéia, quando fomos lançar o primeiro disco, nós já havíamos gravado esse. E fizemos o lançamento do disco só com músicas novas que não entraram nem no segundo disco e nem no disco anterior. Lançamento do primeiro disco com músicas novas (rindo), foi um show no Madame Satã que deixou todo mundo de boca aberta: “Que diabos esses caras estão tocando?”.



O terceiro disco Três Lugares Diferentes é o que a maioria das pessoas preferem porque aí começa uma mescla de ritmos brasileiros com guitarra elétrica – digamos que a gente tenha eletrificado o samba. É um disco bem legal, que tem as nossas músicas mais conhecidas. Tirando “Rock Europeu” que é do primeiro, tem “Teu Inglês”, “Ambos Mundos” – acho que ali tem músicas muito bonitas. E tem uma fase engraçada, meio cubana, pelo menos da minha parte. Eu era casado com uma menina que tinha morado durante seis anos em Cuba, então tem uma faceta um tanto cubana. Tem uma música que, se eu não me engano, se chama “My Petite Cubeine”, são várias referências. “Ambos Mundos” tem uma referência direta à Cuba “El Caimán Barbudo (que quer dizer “o jacaré barbudo”) sentava na própria cauda”. Tem uma música que eu gosto muito e se chama “Massacres da Coletivização”, imagina só uma música com esse nome (rindo) e que falava do Stalin. Mas acho que a minha preferida é “Ambos Mundos” porque realmente é uma música que ficou, e “Teu Inglês” sempre foi meio que um sucessinho.



Já o Amor Louco é o disco menos conhecido, foram feitas mil cópias dele. Muito pouco gente tem e eu não sei se ele vai ser relançado. Acho muito difícil porque a master dele está com o René de uma loja em São Paulo chamada Wop Bop e ele fechou a loja... Encontrei-o outro dia e ele me disse que estava muito afim de relançar. É o único que falta ser lançado em CD e eu descobri outro dia que existem por aí muitas cópias piratas dele em CD. É um disco que muita gente considera o melhor da banda e está fazendo dez anos agora. Tem uma das minhas músicas favoritas, “Chico Buarque Song”; tem também “Kandinsk Song” que eu também gosto muito, além de vários sambas bacanas.



Ele foi gravado num esquema mais profissional, em vários canais, com um certo tratamento – e foi o último disco. Ele se chama Amor Louco por causa do André Breton, do Surrealismo, a maior dívida que particularmente sempre tive nas músicas e letras que fiz. E como eu fui meio trotskista, também tive um contato como trotskista com essa linha surrealista - hoje em dia eu sou um pouco mais aberto. Para nós, a questão da arte era super-importante, então tínhamos muito claro essa manifestação surrealista. É uma citação e uma homenagem direta a Benjamim Perret e ao André Breton. Apesar de eu achar que essa coisa intelectualizada do Fellini nem aparece muito, na verdade acho que predomina o lado pop. Esse disco tem muitas canções pop, embora talvez não seja o mais pop. É também um dos discos que mais gosto.



Com o passar dos anos, a minha apreciação do primeiro disco tem aumentado, ouço muito pouco os quatro discos, mas o primeiro eu comecei a gostar mais. Primeiro porque esse LP foi lançado em 45 rotações, muita gente colocava o disco e não entendia nada por causa do andamento (rindo). Era engraçado, mas basicamente é isso.



O SOM DA MÚSICA - Queria que você falasse um pouco do seu trabalho como escritor.



CADÃO
: Fiz dois livros de contos. Um foi lançado em 95 e é chamado “Ronda Noturna” e o outro foi lançado em dezembro de 99, “Dezembros de um Verão Maravilhoso”. Quando estava em Recife uma menina sentou perto de mim, disse que havia lido o meu último livro e achou que tinha muito a ver com o Fellini. Mas eu acho que não, mas é difícil dizer.



Na época em que eu trabalhava as letras do Fellini, eu nunca tive uma intenção muito profissional de ser um letrista, um astro musical ou qualquer coisa assim. E com a literatura eu comecei a encarar de uma forma mais séria. Acho que rola essa intenção, mas no final das contas esses trabalhos se pareçam um pouco. Diria que os livros possuem um trabalho de linguagem um pouco maior, mas os temas não são os mesmos... digamos que com as letras eu estava tentando fazer poesia e com os livros, ficção. Não sei se consegui, mas gostei muito de escrevê-los e é o que quero continuar fazendo.



O SOM DA MÚSICA - Quando entrevistei o Thomas, ele ressaltou a sua importância como letrista, chegando a compará-lo ao Renato Russo, só que numa escala underground. Você reconhece essa atribuição ao teu trabalho? Ele falou que no Brasil só apareceram dois grandes letristas em termos de influência.



CADÃO
: Acho que é até um pouco exagerado, mas é curioso porque o próprio Russo falou isso. Tem uma entrevista dele que saiu num livro lançado recentemente, Renato Russo de A a Z, e tem lá, onde ele fala dos letristas, que ele me tinha em alta conta realmente. Ele dizia que os melhores letristas eram o Cazuza e eu – e ele não se incluía. Acho que é um exagero porque do Cazuza eu nunca gostei muito. E o Renato quando veio para São Paulo, eu conheci ele bem no começo, a ponto de embarcar para o Rio e gravar o primeiro disco da Legião.



Sempre o achei um letrista legal pra caramba, acho até que ele tem uma coisa um pouco messiânica no final da carreira, uma coisa um pouco lá para o grandioso mas que se justifica perfeitamente pela personalidade dele. Uma coisa ninguém pode negar: ele era extremamente pessoal naquilo que fazia, assim como eu. Eu fazia uma coisa completamente diferente, não sei se era bom ou não, mas acho que é um caminho – assim como também existe o caminho do Renato Russo, que muita gente tentou seguir.



Só acho que existe hoje em dia é muita chatice. Naquela época nós fazíamos o que queríamos, mas hoje em dia as pessoas estão mais preocupadas em ganhar dinheiro, em fazer sucesso a qualquer preço, do que fazer de fato um trabalho musical. Hoje em dia não reconheço grandes letristas, então não sei onde está essa influência. Tinha o Chico Science, que fazia boas letras, mas não sei se elas tinham a ver com as que eu fazia. No mais, acho que não vai muito além.



O SOM DA MÚSICA - Tem o Zero 4, que também apresenta um pouco de humor, que também existia no Fellini.



CADÃO
: É, aquela coisa um pouco mais absurda. Mas acho que não vai muito além disso. Eu gosto muito do trabalho do Otto e as pessoas falam que é aberração, que eu estou completamente maluco porque ele é uma espécie de Carlinhos Brown do mangue beat (rindo). Acho que não, ele tem um tipo de postura que tem muito a ver com o Fellini, as letras... “Ela é do tempo do Bob, lá do Pina de Copacabana...” Até eu entender o que era um bob, um pina e o Copacabana, eu tive que ir pra Recife (rindo). Achei muito legal quando entendi o que significava.



O SOM DA MÚSICA - Quando se fala em rock Brasil anos 80 as pessoas sempre se referem à cena de Brasília. Mas creio que a cena paulista dessa época foi fundamental para a consolidação do rock brasileiro. Você acha que rolou uma injustiça ou isso aconteceu porque a galera da cena paulistana tinha menos aspirações comerciais? Queria que você falasse um pouco dessa época.



CADÃO
: Acho que os caras de Brasília tinham mais “it”, eram um pouco mais charmosos. Capital Inicial, Plebe Rude... Primeiro, são nomes de banda muito legais. Prefiro esses nomes a Ira! ou até mesmo Fellini, esse tipo de coisa. Acho legal uma banda se chamar Plebe Rude ou Legião Urbana. Eles tinham um apelo, que eu não sei se era comercial, mas era um apelo de rock’n’roll.



Quando vi o Capital Inicial a primeira vez, isso em 83, achei que era uma banda muito legal. Uma banda punk, o Dinho estava meio bêbado, com a calça rasgada. Quando vi a Legião eu fiquei chocado, porque era um trio e todos eles tocavam mal pra caralho, eles eram muito ruins (rindo). Essas bandas eram bacanas, tinham um apelo. O que aconteceu com elas depois, isso é uma outra história. Mas acho que houve um momento em que elas eram interessantes e tinham coisas a dizer. Então ‘tá limpo.



Quanto às bandas de São Paulo – francamente, falando com toda a sinceridade – tirando o Fellini, eu não gosto de nenhuma outra. Você até vai me perguntar se é uma coisa pessoal, e pode até ser. Mas a vida é assim: é questão de gosto. Dez anos depois, eu posso falar isso com o maior conforto... não devo nada a ninguém. Enquanto eu também não ouço as bandas de Brasília, mas acho que elas possuem um apelo e ele se transformou em algo palpável. Elas venderam discos e foram bandas que fizeram sucesso.



O SOM DA MÚSICA - Queria que você falasse sobre como a música européia influenciou a sua forma de fazer MPB.



CADÃO
: A minha formação é a seguinte: gosto muito dos Stranglers, sempre gostei. Eles têm um disco chamado Feline, o qual certamente tem a ver com o nome Fellini, que era um disco de experimentações com violões e ritmos eletrônicos – inclusive com uma coisa quase bossa-nova. Acho que temos Stranglers de um lado e também muita coisa de música brasileira.



Eu tenho 43 anos e sempre ouvi muito rádio, então cheguei a escutar muito rádio quando era pequeno. O rádio me influenciou muito, gostava muito de Lúcio Alves – gostava muito de samba. E também gostava das letras, gostava do Noel Rosa. Então a coisa casou por aí: a vontade de ser um pouco punk com a vontade de ser fiel a uma coisa que para mim foi uma influência quando eu era pequeno, que é a canção. Não existe nada mais bonito do que a canção brasileira. Então é um casamento de uma atitude, o jeito de fazer música do “faça-você-mesmo” do punk com a beleza e a verdade das canções brasileiras.



E acho que esse misto acabou dando no Fellini de alguma forma. E vendo hoje em dia, percebo que tínhamos muito da postura punk. Fazíamos o que queríamos, então esse talvez seja o segredo.


Textos open-source de Marcus Marçal. Não é permitida a reprodução destas traduções de forma alguma sem permissão prévia, seja em sua forma integral ou parcial. Por favor, contate-me antes via e-mail.

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Sou Marcus Marçal, jornalista de profissão e músico de coração.

Veja bem, se esta é sua primeira visita, afirmo de antemão que, para usufruir dos textos deste blog, é necessário um mínimo de inteligência. Este blog contém reflexões sobre música, material ficcional, devaneios biográficos, desvarios em prosa, egotrips sonoras e até mesmo material de cunho jornalístico.

E, se você não é muito acostumado à leitura, provavelmente pode ter um pouco de dificuldades com a forma caótica com que as informações são despejadas neste espaço.

Gostaria de deixar claro que os referenciais sobre texto e música aqui dispostos são vastos e muitas das vezes antagônicos entre si. Por essa razão, narrativa-linear não é sobrenome deste espaço, entende?

Tendo isto em mente, fica mais fácil dialogarmos sobre nossos interesses em comum dispostos aqui, pois o entendimento de parte dos textos contidos neste blog não deve ser feito ao pé da letra. E se você por acaso tiver conhecimento ou mesmo noção das funções da linguagem então poderá usufruir mais adequadamente do material contido neste site, munido de ferramentas de responsabilidade de ordem exclusiva ao leitor.

Quero dizer que, apesar da minha formação como jornalista, apenas uma parcela pequena dos textos aqui expostos foi e é concebida com este intuito, o que me permite escrever sem maiores preocupações com formatos ou convenções. Geralmente escrevo o que me dá na telha e só depois eventualmente faço alguma revisão mais atenta, daí a razão de por essas e outras eu deixar como subtítulo para este O SOM DA MÚSICA o bordão VERBORRAGIA DE CÓDIGO-FONTE ABERTO COM VALIDADE RESTRITA, e também porque me reservo ao direito de minhas opiniões se transformarem com o passar do tempo.

Portanto, faço um pedido encarecidamente às pessoas dotadas de pensamento obtuso, aos fanáticos de todos os tipos, aos analfabetos funcionais e às aberrações do tipo: por gentileza, não percam seu tempo com minha leitura a fim de lhes poupar atenção dispensada indevidamente.

Aos leitores tradicionais e visitantes ocasionais com flexibilidade de raciocínio, peço minhas sinceras desculpas. Faço esse blá-blá-blá todo apenas para afastar qualquer pessoa com pouca inteligência. Mesmo porque tem tanta gente por aí que domina as normas da língua portuguesa, mas são praticamente analfabetos funcionais...


As seções do blog você encontra ao lado, sempre no post ÍNDICE DE SEÇÕES, e a partir dele fica fácil navegar por este site pessoal intitulado O SOM DA MÚSICA.

Sinta-se livre para expressar quaisquer opiniões a respeito dos textos contidos no blog, uma vez que de nada vale a pena esbravejar opiniões no cyber espaço sem o aval da resposta do interlocutor.

Espero que este seja um território livre para a discussão e expressão de opiniões, ainda que contrárias as minhas, acerca de nossa paixão pela música. Afinal, de nada valeria escutarmos discos, fazermos músicas, lermos textos, irmos a shows e vivermos nossas vidas sem que pudéssemos compartilhar nossas opiniões a respeito disso tudo.

Espero que você seja o tipo de leitor que aprecie a abordagem sobre música contida neste blog.


De qualquer forma, sejam todos bem-vindos! Sintam-se como se estivessem em casa.

Caso queira entrar em contato, meu email é marcus.marcal@yahoo.com.br.
Grande abraço!
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