JUKEBOX V
"Let's Stay Together"
Quando eu tinha aproximadamente uns onze anos, peguei emprestada uma revista de música de uma parente mais velha e lá havia a letra de "Let's Stay Together", entre as de várias outras músicas. Fiquei curioso com algumas letras publicadas na revista e, na época, aproveitava as tardes bissextas em que ficava sozinho em casa para bisbilhotar os discos do meu pai e começar a mexer em seu aparelho de som novo - coisa que ele havia me proibido. Se não me engano, eu e meu irmão havíamos danificado um toca-discos brincando com a velocidade das rotações. Ou algo do tipo. Numa dessas tardes, depois de curtir discos de piadas do Costinha, fitas do Juca Chaves e músicas do Manhoso, calhou de eu pegar, entre vários LPs que lá estavam, uma coletânea de música dançante e lá havia esta música, na definitiva versão do Al Green. Na real, sequer me recordo qual era o intérprete da canção na revista de música, mas achei engraçado imaginar um cara chamado "Tudo Verde". É aquela coisa: "Fala, Tudo Verde! E aí? Comé que vai essa força?", coisa que só poderia habitar a mente de um moleque que ainda saberia de cor as falas de sua primeira aula de inglês mais de vinte anos depois. Era soul music, algo completamente desconectado do meu dia-a-dia, naquela época sequer me interessava por música. Mas a canção tinha um embalo maneiro e, pelo o que eu entendi da letra, era amorosa sem ser "babosa", enfim era uma "cantada" em forma de música que achei muito bacana. Com o passar dos anos, eu só voltaria a me interessar por soul music muito tempo depois, inicialmente pilhado por uma agremiação bissexta de uma das minhas formações roqueiras prediletas de determinado período da minha formação musical e depois, definitivamente, ao conhecer o som de uma banda que fazia a conexão da música preta americana com o barulhento rock alternativo de minha predileção no final da adolescência - como se quase a totalidade do rock atemporal que eu curtia no rádio, sem saber denominar o nome dos artistas nos 80, não fosse impregnado de negritude em seu DNA musical, morou? Faltava então somente a ponte entre as referências musicais, afinal música boa sempre vai ser música boa a despeito das rotulações, dos cerceamentos cristalizados de forma reducionista nos chamados "gêneros" e "sub-gêneros". E na época em que basicamente me resignei somente a me "alimentar" de sonoridades que me remetessem ao prazer de ouvinte de música atemporal, eu conheci um pouco mais da linhagem da música preta americana que, excetuando-se as pasteurizações e ordinárias posturas musicais de diluidores, merece respeito e admiração de qualquer apreciador de música que se preze. Guardadas as devidas proporções, é de igual para igual em relação à música brasileira. Sobretudo, aquela coisa da atitude do "Only the Strong Survive" documentado certa vez por um cineasta.
E há pouco mais de dois ou três anos, sem sequer me lembrar da existência da música de tão clássico absoluto que ela o é, um dia novamente ela me soou novinha em folha, ainda que se tratasse do mesmo fonograma que eu conheci ainda garoto. Cheguei da praia e, enquanto esperava o rango esquentar no forno, liguei a tevê só de onda. Era um período em que praticamente fiquei anos sem assistir tevê, mas calhou de eu cismar de ligar o aparelho para me distrair. Tevê aberta, eu faço questão de deixar bem claro, apesar de em muitos momentos não haver tanta distinção entre as atrações de cada grade especificamente. E na ocasião começava um "filme", uma historinha que me chamou a atenção enquanto eu rangava. Achava que era apenas mais um filminho sessão da tarde a ser exibido na concorrência, mas decidi assistir integralmente depois que o moleque no "filme" tasca "Let's Stay Together" como referência musical para a única razão de sua existência não se resumir ao mais completo tédio. O cara ainda xaveca sua paixão com a música, mas a garota sequer conhece a música, dentro do enredo da atração. Aquilo me remeteu de alguma forma à índole boa que eu tinha quando adolescente e que acho que ainda consigo manter de algum modo, na medida do possível. Depois fui saber de que se tratava de uma série com vários capítulos e resolvi acompanhar a atração avidamente porque de alguma forma aquilo despertava um troço que me levava a querer tocar violão e a escrever pelo mero prazer de realizar estas atividades. Até o nome da atração tinha alguma conexão com o nome do autor da música! É isso aí, não tem nada a ver, mas aí vai uma maionese! Tudo por causa de uma "musiquinha"... E aí cacei o disco em alguma loja para poder curtir a música sempre que quisesse. E desde então a música nunca vai deixar de soar para mim como sempre soou. Eterna e atemporal! Como se trata de um clássico que não cabe na lógica restrita dos segmentos, volta-e-meia eu a escuto na rua ou em qualquer lugar e sempre dou um jeito de escutá-la. Não bastasse a excelência da cozinha, o ritmo bem amarrado pela sinuosa linha-de-baixo - leia-se: baixo é o principal instrumento de toda a linhagem da música pop que ainda importa - e o balanço leve da bateria ornamentado por umas "guitarrinhas" bonitas em sua economia, equalizadas com boost nos graves apesar de serem os acordes tocados predominantemente nas regiões mais agudas do braço do instrumento. E pra fechar o pacote, um naipe de metais floreando o arranjo para a voz cristalina do cantor tirar onda com seu apurado senso melódico. É nessas horas em que cada vez mais me certifico da besteira que é caracterizar uma determinada manifestação musical sob a pecha de um rótulo. A alma ali certamente não é pequena!
Texto escrito por Marcus Marçal. Não é permitida a reprodução deste texto de forma alguma sem permissão prévia, seja em sua forma integral ou parcial. Por favor, contate-me antes via e-mail.
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Quando eu tinha aproximadamente uns onze anos, peguei emprestada uma revista de música de uma parente mais velha e lá havia a letra de "Let's Stay Together", entre as de várias outras músicas. Fiquei curioso com algumas letras publicadas na revista e, na época, aproveitava as tardes bissextas em que ficava sozinho em casa para bisbilhotar os discos do meu pai e começar a mexer em seu aparelho de som novo - coisa que ele havia me proibido. Se não me engano, eu e meu irmão havíamos danificado um toca-discos brincando com a velocidade das rotações. Ou algo do tipo. Numa dessas tardes, depois de curtir discos de piadas do Costinha, fitas do Juca Chaves e músicas do Manhoso, calhou de eu pegar, entre vários LPs que lá estavam, uma coletânea de música dançante e lá havia esta música, na definitiva versão do Al Green. Na real, sequer me recordo qual era o intérprete da canção na revista de música, mas achei engraçado imaginar um cara chamado "Tudo Verde". É aquela coisa: "Fala, Tudo Verde! E aí? Comé que vai essa força?", coisa que só poderia habitar a mente de um moleque que ainda saberia de cor as falas de sua primeira aula de inglês mais de vinte anos depois. Era soul music, algo completamente desconectado do meu dia-a-dia, naquela época sequer me interessava por música. Mas a canção tinha um embalo maneiro e, pelo o que eu entendi da letra, era amorosa sem ser "babosa", enfim era uma "cantada" em forma de música que achei muito bacana. Com o passar dos anos, eu só voltaria a me interessar por soul music muito tempo depois, inicialmente pilhado por uma agremiação bissexta de uma das minhas formações roqueiras prediletas de determinado período da minha formação musical e depois, definitivamente, ao conhecer o som de uma banda que fazia a conexão da música preta americana com o barulhento rock alternativo de minha predileção no final da adolescência - como se quase a totalidade do rock atemporal que eu curtia no rádio, sem saber denominar o nome dos artistas nos 80, não fosse impregnado de negritude em seu DNA musical, morou? Faltava então somente a ponte entre as referências musicais, afinal música boa sempre vai ser música boa a despeito das rotulações, dos cerceamentos cristalizados de forma reducionista nos chamados "gêneros" e "sub-gêneros". E na época em que basicamente me resignei somente a me "alimentar" de sonoridades que me remetessem ao prazer de ouvinte de música atemporal, eu conheci um pouco mais da linhagem da música preta americana que, excetuando-se as pasteurizações e ordinárias posturas musicais de diluidores, merece respeito e admiração de qualquer apreciador de música que se preze. Guardadas as devidas proporções, é de igual para igual em relação à música brasileira. Sobretudo, aquela coisa da atitude do "Only the Strong Survive" documentado certa vez por um cineasta.
E há pouco mais de dois ou três anos, sem sequer me lembrar da existência da música de tão clássico absoluto que ela o é, um dia novamente ela me soou novinha em folha, ainda que se tratasse do mesmo fonograma que eu conheci ainda garoto. Cheguei da praia e, enquanto esperava o rango esquentar no forno, liguei a tevê só de onda. Era um período em que praticamente fiquei anos sem assistir tevê, mas calhou de eu cismar de ligar o aparelho para me distrair. Tevê aberta, eu faço questão de deixar bem claro, apesar de em muitos momentos não haver tanta distinção entre as atrações de cada grade especificamente. E na ocasião começava um "filme", uma historinha que me chamou a atenção enquanto eu rangava. Achava que era apenas mais um filminho sessão da tarde a ser exibido na concorrência, mas decidi assistir integralmente depois que o moleque no "filme" tasca "Let's Stay Together" como referência musical para a única razão de sua existência não se resumir ao mais completo tédio. O cara ainda xaveca sua paixão com a música, mas a garota sequer conhece a música, dentro do enredo da atração. Aquilo me remeteu de alguma forma à índole boa que eu tinha quando adolescente e que acho que ainda consigo manter de algum modo, na medida do possível. Depois fui saber de que se tratava de uma série com vários capítulos e resolvi acompanhar a atração avidamente porque de alguma forma aquilo despertava um troço que me levava a querer tocar violão e a escrever pelo mero prazer de realizar estas atividades. Até o nome da atração tinha alguma conexão com o nome do autor da música! É isso aí, não tem nada a ver, mas aí vai uma maionese! Tudo por causa de uma "musiquinha"... E aí cacei o disco em alguma loja para poder curtir a música sempre que quisesse. E desde então a música nunca vai deixar de soar para mim como sempre soou. Eterna e atemporal! Como se trata de um clássico que não cabe na lógica restrita dos segmentos, volta-e-meia eu a escuto na rua ou em qualquer lugar e sempre dou um jeito de escutá-la. Não bastasse a excelência da cozinha, o ritmo bem amarrado pela sinuosa linha-de-baixo - leia-se: baixo é o principal instrumento de toda a linhagem da música pop que ainda importa - e o balanço leve da bateria ornamentado por umas "guitarrinhas" bonitas em sua economia, equalizadas com boost nos graves apesar de serem os acordes tocados predominantemente nas regiões mais agudas do braço do instrumento. E pra fechar o pacote, um naipe de metais floreando o arranjo para a voz cristalina do cantor tirar onda com seu apurado senso melódico. É nessas horas em que cada vez mais me certifico da besteira que é caracterizar uma determinada manifestação musical sob a pecha de um rótulo. A alma ali certamente não é pequena!
Texto escrito por Marcus Marçal. Não é permitida a reprodução deste texto de forma alguma sem permissão prévia, seja em sua forma integral ou parcial. Por favor, contate-me antes via e-mail.
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