O SOM DA MÚSICA: JUKEBOX IV

Saturday, October 14, 2006

JUKEBOX IV

"Series of Dreams"

Imagine você ainda moleque, ouvindo falar de um sujeito a princípio ordinário, mas reverenciado por todos os seus heróis. As mãos calejadas de carpinteiro de canções universais arquetípicas, as mesmas as quais o artesão já se referiu ironicamente ou não como oriundas de inspiração divina, matéria de um mundo que nosso vão raciocínio sequer tangencia, sorrateiro em terreno impalpável. Muitas vezes você dúvida da existência de algum poder metafísico, quiçá o que pudesse ser categorizado como força criadora de todas as coisas. Certezas ancestrais postas cada vez mais em cheque paralelamente ao florescer cada vez maior de todas as potencialidades criadoras do próprio animal-homem que, tal e qual a uma parábola arquetípica de ovelha furtiva, se volta contra suas raízes. Para mais a frente retornar cabisbaixo, à procura do recanto do lar? Não creio, sem direção ao lar é uma metáfora da vida de todos nós: árvores que não foram ceifadas abruptamente pela selvageria nata do simples fato de existir.

Em algumas canções, pede perdão, implora proteção aos mais queridos. Mas e se Ele for um cara como nós? Um eremita maltrapilho que, generoso, se relega ao nosso questionamento para que implementemos nossa evolução. Fé, legado ancestral de valor inestimável em contraponto a sua disponibilidade ao nosso alcance. Elemento simbólico, abstração concreta, etc. E se, em sua generosidade absoluta, o próprio se deixasse apenas existir em todos nós, em cada um de nós, para que reconhecêssemos nosso próprio reflexo no espelho vivo que é o próximo? Para reconhecê-lo em você mesmo...

Uma canção, um resumo de trinta anos de uma trajetória de desbravador. Gênio ou impostor? Traidor ou profeta? Criador ou mistificador? Guerreiro ou mero bufão? Escolha a fantasia que melhor lhe convier. "Porra nenhuma, deixa de palhaçada!" Demasiadamente humano, diria um alemão bigodudo que parece ter engolido um pardal com o rabo de fora. É o mais fantástico dos seis outtakes das sessões do aclamado Oh Mercy, não por pouco era considerada por alguns envolvidos a melhor música da safra. Mas Robert Allen, inexplicavelmente, não quis que ela entrasse no disco. E olha que o álbum foi muito bem recebido na época de seu lançamento.

Produzida por Daniel Lanois, que se notabilizou por trabalhos entre outros como o U2, ele conseguiu captar uma atmosfera típica de suas contribuições ao conjunto irlandês, notoriamente seguidor do pato rouco pai do Jacó, a ponto de Paul Hewson "adaptar" a sua maneira vários de seus versos via Bruce Frederick Joseph. Vale lembrar, Paul e praticamente todo o rock, diga-se. Não é isso? Então está bem. Até mesmo Robert Nesta, um rivalitário contemporâneo como John Winston ou uma admiradora incomum como Patricia Lee, quase o desenrolar de toda uma linhagem de compositores legendários. De qualquer forma, o mérito não é algo a se inflar o ego, vários textos ancestrais também lhe serviram de inspiração.

Na letra, confessional pra caralho, ele aborda conclusões e observações colhidas na experiência de seus então 30 anos de carreira. A junção entre os elementos que formam uma composição musical está ali: irrepreensíveis. Você precisa de mais motivos para o cara não ser considerado nada menos que a maior entidade musical da iconografia de sua época? Tá bom! Robert Allen canta com sentimentos simplórios e técnica rústica com as quais expõe a crueza de suas melodias e harmonias geniais de tão simples, o ritmo marcado pelas intervenções corretas de baixo e bateria fazem cama aconchegante para o cantor descarregar toda a sua emoção. Melhor assim?

Não é fácil! O cara consegue fazer um épico de seis minutos com nada mais que quatro acordes, daqueles mais manjados que o pálido lombo glúteo Kojac de Angus Young nos home videos ao vido do AC/DC. Além do mais, o som desce redondo, macio e reanima, sem a mentira do bordão publicitário. Sem ressaca ou headache no dia seguinte. Dó maior, Sol maior, somados aos complementares Lá menor e Fá maior para a coisa não ficar monocórdica. Longe disso, a parada foi tão bem finalizada que os instrumentos eqüivalem a uma orquestra entoando sonoridades que provavelmente não vêm deste mundo...

E a voz? A VOZ! Muitos cantores ordinários dados como bardos do bom canto não passam de onanistas do próprio gogó, narcisistas da suposta profundidade de suas gargantas. Robert Allen, não. Ligado desde os primórdios à ancestralidade e às raízes de seu próprio povo, é econômico a ponto de não ousar aparecer mais do que o necessário. E nem precisa, se levarmos em conta a grandeza de cada canção sua, em particular. Mantras.

Tamanha economia beira o paroxismo a ponto de torná-lo uma antítese do bom canto pela aspereza de sua voz. “Eles não sabem nada de música”, sem fazer esforço sacaneia seus detratores enquanto transforma cada canção sua de acordo com sua pilha na hora, demonstrando uma liberdade atípica à indulgência previsível do cenário do qual faz parte. Quer dizer, que ele ajudou a criar. E Allen pode tirar essa onda. Respeito.

Mesmo sem ser propriamente bem entendido, muitos infiéis baixam a guarda, deixam a pompa e lhe pedem benção com aquele misto de respeito e receio de terem sua ignorância expostos ao ridículo. E o bardo revela disfarçada complacência em relação aos mais humildes. Há muito já batera de frente à unanimidade idiota. Bah, várias vezes! "Saiam daqui, seus hippies escrotos..." E olha que eu estava armando uma caravana de peregrinos em direção ao seu mausoléu em Woodstock, ia até chamar o pai de Pené para ser o guia do passeio. Mal aí, passageiros...

Enfim, a maior entidade do mundo pop. Guarde sua heresia para a próxima invenção mentirosa do mercado, ok? Junto a muitos de seus contemporâneos, Allen é também biografia da famigerada cultura pop, um reality show vivo das crônicas da vida real desnuda do ilusório e fantasioso mundo pop e seus infindáveis charlatães travestidos de mágicos de oz. A partir deles, o tal do rock germinou, floresceu, amadureceu e envelheceu como fenômeno do que antigamente se convencionou como cultura de massa.

Um mergulho em sua vasta obra, que mais se parece com uma atlética travessia por todos os mares existentes e os nunca antes navegados, revela ao leitor infindáveis maravilhas escondidas à distância da superfície. O fundo do mar revela tesouros da humanidade, perólas perdidas, espécimes raros de um universo em constante transformação. Não diferentes daquelas que o Homem promove regularmente em suas canções, standards ou não, a fim de lhes tirar o mofo. Evitável, mas bolor ignorado pela maioria de seus colegas de classe, simpáticos ao demônio da máquina de fazer grana a qualquer custo.

Integridade? Nah, palavra por demais banal para expressar algo que vai muito além de mera celebração deslumbrada com aptidões natas a nossa humanidade, esquecida e solapadas pela realidade cotidiana de sermos condicionados como pequenas peças na engrenagem da máquina de triturar cérebros pelos condicionamentos oriundos da repetição. Mesmerismo...

E a obra de Robert Allen apresenta apenas as facetas públicas de um personagem riquíssimo. Santo, maléfico, generoso, mesquinho, humilde, ostentador, bajulador, arrogante, missionário da verdade, mentiroso patológico, devoto, herége e um et cetera por demais abrangente, totalitário do que se compõe a nossa humanidade, essência de humano...

Se você curte rock ou música pop, não titubeie. Peça-lhe a benção, ahahah. É quando Woody Allen te faz uma sutil repreensão, pois não se trata de nenhuma santidade. Humano. Com aquela mesma voz oscilando do cisne afônico à taquara rachada, capaz de promover uma ponte do real com o que existe de mais divino. Nossa, quanta maionese!

Mas quando você estiver indo embora, desencantado e decepcionado com sua grosseria, o rabugento carrega no rosto aquele sorriso acolhedor que você esperava, mas não vê. “Vai lá, criança! Não há nada de sobre-humano, tudo não passa de uma grande batalha. Então, mãos à obra. Que a jornada nos abençoe”, enquanto caminha sozinho em meio à toda multidão com o vestuário maltrapilho de nossa universal realeza disfarçada.

Texto escrito por Marcus Marçal em 1 de outubro de 2003. Não é permitida a reprodução deste texto de forma alguma sem permissão prévia, seja em sua forma integral ou parcial. Por favor, contate-me antes via e-mail.

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