ÁLBUM DE RETRATOS II
MEADOS DE 1989
Saio das aulas do último ano colegial e perambulo pela cidade. Sempre invento alguma atividade para poder almoçar sozinho a qualquer hora que quero. Visito eventualmente uma biblioteca da cidade, mas às vezes vou para a casa de algum amigo, que provavelmente deve achar que quero filar o rango da casa, mas dificilmente almoço na casa dos outros. Simplesmente minha motivação para passatempo não é exatamente esta. Nessa época, firmo amizade com um maluco um pouco mais novo, o OBG, conhecido de alguns amigos meus e rechaçado pelas costas por todos eles. O bacana é que o sujeito mora sozinho com a mãe que trabalha fora e fica boa parte da tarde sem fazer nada que preste. Como o cara tem uma vasta coleção de vídeos e LPs que sequer tem tempo de consumi-los, às vezes bato lá na casa do maluco para trocar idéias. E volta e meia o sujeito bota uma pilha de VHS para assistirmos de bobeira a vários daqueles shows oficiais ou não que afiguram na videoteca de qualquer adolescente bem abastecido de música nos anos 80, de rock nacional a artistas estrangeiros. Principalmente material obscuro de hard rock feito de meados dos anos 70 até a metade dos anos 80, apesar de também material da vanguarda metal da época que ainda me é ininteligível enquanto instrumentista. Uma amiga de escola que conheço desde a infância é sua vizinha de frente e o cara é apaixonado por ela, que já fora sua namorada, mas naquela época começa a namorar outro amigo meu da época. Ela tem uma irmã mais nova linda que todo mundo vive secando e vagabundo não acredita quando ela se interessa pelo moreno aqui e começamos um namorico. Menos ainda quando não a procuro mais porque me chateio com alguma coisa que me disse. A vida na faculdade está a caminho, mas ainda cismo de fazer música. Não toco porra nenhuma mais, havia deixado de lado as aulas de violão clássico e quero fazer rock dos mais burrões possíveis. Acelga, o baterista da banda – se é que aquilo poderia se chamar assim – havia debandado devido a problemas em casa e por isso não ensaiamos há muito tempo, apenas quando o baixista Tutu convencia um amigo vizinho a emprestar a aparelhagem e sua habilidade nos tambores para levarmos um som. Em troca, o cara faz às vezes de baixista no conjunto do baterista. E de tanto falarmos de música, meu amigo-videoteca compra uma bateria artesanal que rodava de mão em mão pelos batuqueiros da cidade. O sujeito conhece mais rock e música pop do que eu na época, então naturalmente a banda pode engrenar. Passo novamente a praticar a guitarra todos os dias em vez de deixar a tarefa para outro amigo, fissurado em música brega e quase anti-rock, que musicava meus textos. Tiramos o cara da banda, sem traumas de ambas as partes. Enquanto volto a evoluir no instrumento a cada dia, o novo baterista OGB não parece se adequar às nossas vontades e capacidades musicais, tampouco às nossas motivações em comum. Tutu, o baixista da banda até então é um músico bem melhor que eu a ponto de achar que o cara firula demais, quando na verdade poderia ter se tornado futuramente um exímio baixista no sentido clássico do termo. E eu volto a curtir mais a guitarra, influenciado pelos instrumentistas de rock pesado. Mas o baterista, gordão, não consegue tocar as levadas que tem em mente. Não tem fôlego, nem técnica para tanto. E assim firmamos amizade com um baterista de primeira que é apaixonado pela irmã da vizinha do aspirante a batera, que parece almejar a oportunidade de estar mais próximo de sua amada em nossa companhia. O foda é que nosso baterista gordão começa a entrar numa de, já que não consegue ser baterista, forçar a barra para se tornar vocal da banda, posto que não está vago. E sutilmente me mina gratuitamente em comentários pejorativos aos quais equiparava de forma magnânima seus supostos talentos vocais. Percebo, mas deixo correr. Porra, o sujeito se gaba de conseguir entoar timbre semelhante ao do vocalista do grupo Traje de Banho Feminino Enfiado na Bunda. Por meu lado, anos depois perceberei que o sujeito tinha razão em suas críticas em relação a mim, mas as expõe da forma mais burra possível. Ninguém aqui é exímio instrumentista e só queremos levar um som com uma identidade que sequer criáramos até então. Mas o sujeito começa uma campanha de me tirar da minha própria banda e passa a querer vuduzar a cabeça de um por um. E o cara é meu amigo e até se convidou para ir comigo para a casa de meus parentes no litoral, convite que dificilmente eu faço. E não o fiz. Joguei um caô de que a dona-da-casa não permite visitas para ver se o sujeito se manca, mas, mesmo assim, o sacripanta pega o telefone que poucas pessoas têm e liga para se certificar. Apesar da minha orientação expressa, a dona-da-casa convida o cara. Puta merda! O tempo vira durante o feriado. E quando a coisa do vudu vocal começa incomodar a todos nós envolvidos com a banda, falo com o cara na moral jogando na cara tudo o que ele falava pelas minhas costas. O sujeito é afeito a se impor pelo tamanho, inclusive com brincadeiras escrotas de quem fez duas aulas de judô e se acha numa de pegar os amigos desprevenidos para demonstrar sua força e técnica. Você sabe, quando se é adolescente, em caso de porrada em proximidade, gordura é sinal de força se você é esbelto. Mas naquele momento foi surpreendido e começou a dissimular, a dizer que não era nada daquilo. Como a guarda estava baixa, eu disse na lata do sujeito as minhas opiniões a seu respeito e o cara ouviu sem acreditar que eu estivesse ciente de sua tramóia o tempo todo. Daí ouve coisas que sequer imagina, escuta tanta merda suficiente para se chatear a ponto de sua mãe me ligar para tirar satisfações. Aí eu não agüento. Retruco o que dá com a senhora e depois ainda aviso o cara sobre o ocorrido, amigo que eu era e deixava de ser. O cara se desmotiva totalmente da idéia de tentar fazer música para o bem da humanidade, mas a partir daí, minha bandinha de adolescência – se é que poderia se chamar assim, pois nem formação fixa tinha, o que justifica meu total descaso pelos projetos coletivos tão em voga hoje em dia – nunca mais seria a mesma. Para o bem e para o mal.
Continua...
Texto de Marcus Marçal
Todos os direitos reservados ao autor. Não é permitida a reprodução deste texto de forma alguma sem permissão prévia, seja em sua forma integral ou parcial. Por favor, contate-me antes via e-mail
Saio das aulas do último ano colegial e perambulo pela cidade. Sempre invento alguma atividade para poder almoçar sozinho a qualquer hora que quero. Visito eventualmente uma biblioteca da cidade, mas às vezes vou para a casa de algum amigo, que provavelmente deve achar que quero filar o rango da casa, mas dificilmente almoço na casa dos outros. Simplesmente minha motivação para passatempo não é exatamente esta. Nessa época, firmo amizade com um maluco um pouco mais novo, o OBG, conhecido de alguns amigos meus e rechaçado pelas costas por todos eles. O bacana é que o sujeito mora sozinho com a mãe que trabalha fora e fica boa parte da tarde sem fazer nada que preste. Como o cara tem uma vasta coleção de vídeos e LPs que sequer tem tempo de consumi-los, às vezes bato lá na casa do maluco para trocar idéias. E volta e meia o sujeito bota uma pilha de VHS para assistirmos de bobeira a vários daqueles shows oficiais ou não que afiguram na videoteca de qualquer adolescente bem abastecido de música nos anos 80, de rock nacional a artistas estrangeiros. Principalmente material obscuro de hard rock feito de meados dos anos 70 até a metade dos anos 80, apesar de também material da vanguarda metal da época que ainda me é ininteligível enquanto instrumentista. Uma amiga de escola que conheço desde a infância é sua vizinha de frente e o cara é apaixonado por ela, que já fora sua namorada, mas naquela época começa a namorar outro amigo meu da época. Ela tem uma irmã mais nova linda que todo mundo vive secando e vagabundo não acredita quando ela se interessa pelo moreno aqui e começamos um namorico. Menos ainda quando não a procuro mais porque me chateio com alguma coisa que me disse. A vida na faculdade está a caminho, mas ainda cismo de fazer música. Não toco porra nenhuma mais, havia deixado de lado as aulas de violão clássico e quero fazer rock dos mais burrões possíveis. Acelga, o baterista da banda – se é que aquilo poderia se chamar assim – havia debandado devido a problemas em casa e por isso não ensaiamos há muito tempo, apenas quando o baixista Tutu convencia um amigo vizinho a emprestar a aparelhagem e sua habilidade nos tambores para levarmos um som. Em troca, o cara faz às vezes de baixista no conjunto do baterista. E de tanto falarmos de música, meu amigo-videoteca compra uma bateria artesanal que rodava de mão em mão pelos batuqueiros da cidade. O sujeito conhece mais rock e música pop do que eu na época, então naturalmente a banda pode engrenar. Passo novamente a praticar a guitarra todos os dias em vez de deixar a tarefa para outro amigo, fissurado em música brega e quase anti-rock, que musicava meus textos. Tiramos o cara da banda, sem traumas de ambas as partes. Enquanto volto a evoluir no instrumento a cada dia, o novo baterista OGB não parece se adequar às nossas vontades e capacidades musicais, tampouco às nossas motivações em comum. Tutu, o baixista da banda até então é um músico bem melhor que eu a ponto de achar que o cara firula demais, quando na verdade poderia ter se tornado futuramente um exímio baixista no sentido clássico do termo. E eu volto a curtir mais a guitarra, influenciado pelos instrumentistas de rock pesado. Mas o baterista, gordão, não consegue tocar as levadas que tem em mente. Não tem fôlego, nem técnica para tanto. E assim firmamos amizade com um baterista de primeira que é apaixonado pela irmã da vizinha do aspirante a batera, que parece almejar a oportunidade de estar mais próximo de sua amada em nossa companhia. O foda é que nosso baterista gordão começa a entrar numa de, já que não consegue ser baterista, forçar a barra para se tornar vocal da banda, posto que não está vago. E sutilmente me mina gratuitamente em comentários pejorativos aos quais equiparava de forma magnânima seus supostos talentos vocais. Percebo, mas deixo correr. Porra, o sujeito se gaba de conseguir entoar timbre semelhante ao do vocalista do grupo Traje de Banho Feminino Enfiado na Bunda. Por meu lado, anos depois perceberei que o sujeito tinha razão em suas críticas em relação a mim, mas as expõe da forma mais burra possível. Ninguém aqui é exímio instrumentista e só queremos levar um som com uma identidade que sequer criáramos até então. Mas o sujeito começa uma campanha de me tirar da minha própria banda e passa a querer vuduzar a cabeça de um por um. E o cara é meu amigo e até se convidou para ir comigo para a casa de meus parentes no litoral, convite que dificilmente eu faço. E não o fiz. Joguei um caô de que a dona-da-casa não permite visitas para ver se o sujeito se manca, mas, mesmo assim, o sacripanta pega o telefone que poucas pessoas têm e liga para se certificar. Apesar da minha orientação expressa, a dona-da-casa convida o cara. Puta merda! O tempo vira durante o feriado. E quando a coisa do vudu vocal começa incomodar a todos nós envolvidos com a banda, falo com o cara na moral jogando na cara tudo o que ele falava pelas minhas costas. O sujeito é afeito a se impor pelo tamanho, inclusive com brincadeiras escrotas de quem fez duas aulas de judô e se acha numa de pegar os amigos desprevenidos para demonstrar sua força e técnica. Você sabe, quando se é adolescente, em caso de porrada em proximidade, gordura é sinal de força se você é esbelto. Mas naquele momento foi surpreendido e começou a dissimular, a dizer que não era nada daquilo. Como a guarda estava baixa, eu disse na lata do sujeito as minhas opiniões a seu respeito e o cara ouviu sem acreditar que eu estivesse ciente de sua tramóia o tempo todo. Daí ouve coisas que sequer imagina, escuta tanta merda suficiente para se chatear a ponto de sua mãe me ligar para tirar satisfações. Aí eu não agüento. Retruco o que dá com a senhora e depois ainda aviso o cara sobre o ocorrido, amigo que eu era e deixava de ser. O cara se desmotiva totalmente da idéia de tentar fazer música para o bem da humanidade, mas a partir daí, minha bandinha de adolescência – se é que poderia se chamar assim, pois nem formação fixa tinha, o que justifica meu total descaso pelos projetos coletivos tão em voga hoje em dia – nunca mais seria a mesma. Para o bem e para o mal.
Continua...
Texto de Marcus Marçal
Todos os direitos reservados ao autor. Não é permitida a reprodução deste texto de forma alguma sem permissão prévia, seja em sua forma integral ou parcial. Por favor, contate-me antes via e-mail
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