O SOM DA MÚSICA: CANHOTO DE INGRESSO IV

Wednesday, July 19, 2006

CANHOTO DE INGRESSO IV

CONCERTOS PARA A JUVENTUDE
Sonic Youth, Taquara/RJ (Novembro de 2005)

No telão ao fundo, citações religiosas são misturadas a imagens de cataclismas e de poluição ambiental a atestar o imperial descaso dos donos do mundo em relação aos preceitos do Protocolo de Kyoto e pontuam um econômico, porém eficiente, roteiro de canções recentes misturadas a parcas exceções. Por esta razão, teve até gente maneira zoando o show, dizendo que a apresentação foi uma “experiência mística”. As aspas estavam ressaltadas em prol de um humorismo rasteiro, mas o modo tipográfico itálico é cortesia minha por discordar em absoluto com o injusto desmerecimento ao espetáculo apresentado no palco. Longe de um possível demérito da formação nova-iorquina, a apreciação pejorativa de alguns deve ter sido oriunda das expectativas frustradas em relação ao próprio festival, pois uma banda como somente o Sonic Youth pode ser na cena contemporânea tocando com um baita mau humor em palco secundário após a iconoclastia performática da rediviva lenda-viva dos Stooges reativados secundados pelo baixo majestoso de Mike Watt, este que também dispensa apresentações, há de sempre ser uma experiência impactante. Na boa: não conheci Lee Ranaldo nos primórdios, não os assisti no C.B.G.B.’s recém-contratados pela Geffen Records, não os vi no Circo Voador na era Dirty porque o show miou logo após a comemoração de seu anúncio e culminou com a conseqüente barriga dos jornalistas furões, como também nunca viajei para ver a banda no exterior. Portanto, apesar de já os ter visto em 2000 no festival de jazz, a meu ver nunca me será desperdício ver este grupo em ação. Pelo contrário. Os standards do quarteto já foram por mim atestados ao vivo na primeira ocasião, daí sempre há de ser interessante vê-los tocando material mais obscuro, bom apreciador que me considero. Pois em função do corte de tempo do show devido aos atrasos promovidos pela desorganização, foi quase um Lado B do Sonic Youth recente que presenciamos na Cidade do Rock. O álbum em turnê de divulgação, Sonic Nurse (2004), terceira parte de uma trilogia sobre Nova Iorque ignorada pela imprensa, me soa até hoje fácil como um dos melhores trabalhos de uma banda que não se acomoda em sua própria gestalt criativa. Longe disso. A despeito do natural apego da audiência média aos populistas Goo (1990) e Dirty (1992), junto aos quais Daydream Nation (1988) entra como divisor de águas e Experimental, Jet Set, Trash and No Star (1994) é a torneira fechada da represa “popularesca” do grupo, a criatividade do conjunto sempre esteve em franca evolução – especialmente no que diz respeito aos quesitos texto e guitarras, não por acaso um dos estandartes de minhas predileções em formato rock. E por se tratar de uma banda essencialmente experimental na abordagem do linguajar roqueiro, fica difícil ao leigo captar as diferentes nuanças harmônicas e melódicas no som do Sonic Youth. Talvez haja a carência de uma maior noção de foco – leve a mal, não. Pois para grande parte da platéia comum de rock alternativo, grande parte é dissonância em demasia a quem se atreve à apreciação de meros acordes naturais maiores e menores como predileção pseudo-indie. Verdade é que o lado cerebral do conjunto é atenuado no cabecismo ao ser potencializado no impacto pela abordagem punk de seus respectivos instrumentos. E em um show de rock da proporção de um festival como foi este promovido pela companhia telefônica, é claro que o bom texto na obra do conjunto fica escondido no meio da zoeira, no entanto esta é um dos motivos que torna uma apresentação do Sonic Youth aqui no Brasil imprescindível para qualquer apreciador de três acordes que se preze. Em minha opinião, trata-se da maior entidade essencialmente punk contemporânea a se entranhar nas engrenagens da indústria do disco com uma equilibrada combinação de tendências vanguardistas misturadas à articulação política em boa medida munida de econômicas tendências pop. Não à toa, o escritor Michael Azerrad, figura de ponta na apreciação das propostas estéticas do underground estadunidense, os apregoou a alcunha de arquétipo indie, sob a qual se notabilizaram com trabalhos respeitados artisticamente sem, no entanto, deixarem de ser populares. Fator que os deixa numa posição maior de inspiração do que propriamente uma influência palpável ou tangível junto a novas gerações alternativas de música rock, tamanha é a consistência particular de seu estilo – o que impossibilita absolutamente o emular de sua arte. Tanto é verdade que, quaisquer tentativas dessa sorte hão de sucumbir em meio à jornada, o mesmo não poderia se dizer de um Ramones, caroço de manga chupado por décadas que mesmo apodrecido ainda continua a ser servido como fina iguaria musical por todo tipo de nádega flácida a se dizer roqueiro. E o mais importante, digno de nota, é a manutenção da integridade artística, incólume durante tantos anos. Formação alguma se manteve tanto tempo na ativa e em franca evolução de seus potenciais criativos há mais de vinte anos. Quero ver você enumerar exemplo semelhante. Vai lá, procure aí... Eu espero... E aí? Por aqui, no quinhão tropical do gratuito exotismo para estrangeiros, é até difícil mensurar a influência do conjunto, a anos-luz do estereótipo alternativóide noventista nativo baseado em peças de vestuário e preconizado pelos entendidos no assunto. No entanto, é mais válido ressaltar a importância do grupo na linhagem histórica que funde as disseminações protopunk com reverberações da vanguarda artística de outras eras, capitaneadas pela influência de John Cage via Glenn Branca. Este último considerava seu pupilo Lee Ranaldo o principal mantenedor de sua feroz e inaugural linhagem guitarrística desde os tempos em que o cara integrava seu inacreditável sexteto de guitarras a exortarem um impensável metal pesado minimalista em volume ensurdecedor, este abordado na improvável condição de elemento musical. Em seus melhores momentos, a música do Sonic Youth é etérea da mesma forma que pode ser violentíssima e em seus piores momentos se assemelha a uma guloseima envenenada ou a algum docinho que somente Timóteo poderia lhe propiciar. Melodia em meio a zunido de turbina de avião violentando seus ouvidos, embora tal faceta seja mais uma vez atenuada pelo P.A. poupado em prol da “saúde pública dos jovens roqueiros”. E por falar em juventude, o som do grupo exala mais disso do que propriamente boa parte das bandas novatas adeptas de tendências neopunk e suas corruptelas afins. Falar “boa parte” é sinal de esperança de que em alguma garagem fedorenta haja alguma formação com potencial realmente revitalizante para uma linguagem musical tão desgastada como é a do beabá roqueiro contestador. Compara-los àquele grupo punk pop com visual a lá Misfits e pilha musical na linha Polegar que também tocou na mesma noite é tentar misturar água e óleo. Autismos de descartável mercadologia televisiva adolescente devem ficar à parte, enquanto nos voltemos à música que nos interessa: o quarteto clássico da formação nova-iorquina continua acompanhado por Jim O’Rourke, que na realidade parece atuar mais como um coadjuvante de indie deluxe pois, seja um quarteto ou quinteto, a massa sonora um tanto disforme no som do grupo via dissonância permanece com o mesmo impacto. E verdade seja dita – chauvinismo algum a parte, pois ela é adorável – Kim Gordon é mais expressiva pontuando graves aos esquisitos devaneios sonoros das guitarras de Thurston Moore e Lee Ranaldo do que propriamente empunhando o instrumento de seis cordas. Longe de parecer uma novata no ramo, pois ela não é, no entanto a contribuição guitarrística da loura se apresenta quase como uma emulação oitava acima do que ela própria costuma pautar ao som do outrora-quarteto via freqüências mais graves, o que não interfere na formação da banda, mas redunda em certos momentos conflituosos ao dialogar com as linhas marcadas por O’Rourke. Nos melhores momentos, consegue contribuir com frases bem colocadas em meio a piração musical dos guitar players, mas em outras situações acaba por tirar foco do brilhantismo no tremendamente peculiar diálogo musical entre os colegas de banda. Em outras palavras, a escultural e quase palpável textura harmônica das guitarras sob a forma de dissonâncias se mantém enquanto combinação alienígena independentemente às doze ou às agora dezoito cordas de guitarras dispostas no set. O baterista Steve Shelley é a peça fundamental que amarra o dinamismo musical do grupo a uma atmosfera sonora mais concreta, pontuando com intensidade e sutileza as abstrações sonoras perpetradas por seus colegas de banda. Por essas e outras razões que somente a presença em um show deles pode propiciar, a participação do Sonic Youth em um festival de grande porte com perfil alternativo, entre o insosso populismo Parmalat alternativo para a meninada “indie” dos Flaming Lips e a frígida assepsia sonora de um Nine Inch Nails dez anos atrasado, conferiu dignidade e memorabilidade a uma empreitada sobre a qual a audiência tinha todos os motivos para falar mal. Mas o show dos novaiorquinos, assim como o dos Stooges que os precederam, fez valer o preço do ingresso. Sendo assim, eu até desisti de pedir ressarcimento pelos cinco reais pagos a um cambista desesperado pelo meu ingresso. Ainda bem que não o comprei antecipadamente...

Texto de Marcus Marçal concebido originalmente em novembro de 2005
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