O SOM DA MÚSICA: CANHOTO DE INGRESSO III

Wednesday, July 19, 2006

CANHOTO DE INGRESSO III

DA GARAGEM UNIVERSAL O ROQUENROL MAIS VIRA-LATA
Stooges, Taquara/RJ (Novembro de 2005)

Eles já foram uma das formações mais perigosas na história do rock. Personificavam na presença de seu frontman o que poderia haver de mais débil, violento, transgressor e ultrajante na história do rock em plena pasmaceira do ideário hippie a descer ladeira abaixo, enunciando a década de excessos de toda sorte em vias de se configurar. Punk precoce por intermédio da perversão vingativa de uma “starlet primadonnamorrisoniana a zoar com a cara da inteligência futura da América, detonado pelo desencanto de um moleque branquelo a atrever meter-se em meio ao bluesmen velhos-de-guerra como se fosse um deles. No decorrer de uma inocente saudação a uma solene entidade jamaicana, a faísca de uma idéia inovadora que revolucionaria a música surge quase como efeito de uma possível seqüela. Dali em diante a música jovem nunca mais poderia ser a mesma, tamanha a cicatriz na face bebê Johnson do que ainda poderia haver de genuína inocência na música pop. E se as turnês do Doors em alguns momentos representaram o que havia de mais verdadeiro de caos e desordem, a partir da aparição destes quatro patetas de Detroit no cenário, a cultura roqueira ganha contornos musicais equivalentes ao vandalismo intrínseco às suas reações mais recônditas em relação ao conformismo e às convenções sociais do estabelecido. Em outras palavras, ao passo que era cada vez mais assimilado pelo senso comum, o submundo rock’n roll tornava-se cada vez mais arisco, inconseqüente, destrutivo e gratuito, uma resposta e tanto à "assimilação" da estereotipia hippie caricatural. Rock’n Riot! O mesmo visionário que catou os Doors, propiciou aos Stooges seu primeiro registro em disco, embora com uma abordagem mais classuda, esta oriunda da perspectiva de um artista vanguardista produzindo o disco, epômino e lançado em 1969. Resultado: um dos LPs mais atemporais a eternizar o calor roqueiro em registros fonográficos. A desordem musical e comportamental segue adiante em shows caóticos em tudo quanto é buraco e em conseqüente LP chamado Fun House (1970), homenagem ao pardieiro onde vivia a família Pateta, no qual o primitivo vandalismo musical do quarteto ganha contornos ainda mais radicais com a inserção de novos elementos a sua elementar musicalidade troglodita, ganhando espaço até para tendências jazzistas em meio à barulheira que lhes é peculiar. Tanta atmosfera caótica resulta em um precoce encerramento das atividades. Não era por menos: no que o MC5, contemporânea formação complementar ao caos pateta, tinha de politizado, os Stooges carregavam tintas em uma demencial explosão de distúrbio ao gênero que um comportado poodle chamado Elvis, cagão a comer na mão de milico aposentado, ousou um dia personificar a uma era conservadora. E é no legado redivivo desta musicalidade que se baseia a reencarnação em palcos dos Stooges, mais de vinte anos depois de sua dissolução – ainda que a primeira reencarnação tenha tomado a remanejada forma de Iggy & the Stooges em Raw Power (1973), avalizada por David Bowie e trazendo um dos irmãos Patetas trocando sua guitarra personalíssima pelas tramas de um contrabaixo mais sinuoso a complementar o histriônico heroísmo guitar de um músico de caráter pra lá de duvidoso: o mesmo line up figurado até setembro de 1974, ocasião do último show da segunda parte da história da banda, ainda que protagonizada por seu vocalista, munida de um repertório natimorto de teor menos cáustico, porém mais musical – com direito até à inclusão de um piano boogie woogie na formação – nocaute performático encontrável no semipirata Metallic K.O. (a vir à tona somente em 1977), incomodamente verossímil documento sobre o quão ultrajantes eram os Stooges nesta segunda fase. Mais de vinte anos depois, a lenda rediviva é anunciada como principal atração de um festival estrangeiro. Iggy Pop já passara por todos os altos e baixos inimagináveis possíveis e encara até uma bem-sucedida carreira-solo desde seu enésimo e definitivo retorno da sarjeta com a ajuda de David Bowie por intermédio de seu disco best seller, Blah Blah Blah (1986), caracterizado por um pop eletrônico por excelência pautado por sintetizadores. A turnê seguinte do álbum Instinct (1988) chega ao Brasil trazendo o Iggy Pop de antes domando seu demonismo químico que quase o levara à vala comum por tantas vezes, confira uma das faixas do disco 4 do Box Nights of the Iguana (fala, Jonathan) e saiba do que se trata, mas a aparição da lenda foi suficiente para deixar seqüelas e cicatrizes comportamentais por onde passou. A partir daí, a carreira solo de Iggy se consolidou de maneira inédita. Fosse com discos mais ou menos inspirados, mas todos trazendo pelo menos algum clássico, importantes para o entendimento de sua trajetória biográfica, ou ainda com apresentações demenciais do estado mais bruto que o rock’n roll maracujá enrugado poderia ainda se manifestar. Acompanhado por novatos que são tão escória quanto Iggy o era e ainda é, suas performances musicais nunca foram tão intensas, a ponto de nos fazer até justificar se não teria sido mais bacana um show solo de Iggy com sua banda The Trolls em vez da aparição com os verdadeiros e calejados pais da matéria. A maior entidade garageira inconstestável enquanto instituição roqueira, seu novo álbum em elaboração deverá significar um passo adiante à própria linhagem ruidosa de blues punk garageiro que eles inauguraram. A ser produzido por um velho tradicional e notório retratista de esporros sonoros como o é Steve Albini (sim, aquele que melhor compactou o poderio sonoro do Nirvana em disco, por exemplo) e também por um novato afeito a velharias sonoras, mas sem mofo passadista como Jack White, o novo disco tem tudo para colocar as coisas em seu devido lugar. Verdade que o show, histórico por razões que não precisam ser enumeradas, primou mais pelo re-visitar de um arquétipo sonoro da memória afetiva roqueira do que necessariamente por uma respeitosa tradição sonora que, em tese, deve ser sempre colocada em xeque. No entanto, o show propriamente dito foi suficiente para ficar na lembrança de todos os presentes. Seja pelo apelo passadista aos roqueiros veteranos, seja via apelo performático de Iggy Pop no caso de uma incauta perspectiva roqueira novata. Tanto é verdade que o que teve de gente acometida por medonhos encostos de chacrete, inclusive “autoridades” no assunto underground no Rio. Um certo sobrinho do J.T. não há de me deixar mentir: como eu, também estava envergonhado pela reação de uma figura “amiga” respeitável que, Don Juan de traveco deslumbrado por assistir in loco uma de suas associações prediletas mais essenciais para sua formação roqueira, começou a demonstrar seus dotes de “dançarina de axé”. E por falar em travestismos de ordem musical também vale ressaltar que o que fica de herança pateta aos jovens fãs da Boa Charlotte é a possibilidade de se fazer rock’n roll desafiador com parcos recursos, desde que imprescindível seja a vontade de soar cru e autêntico. E nem todo o roteiro de canções se resumiu à velharia anti-hippie. Prova disso são as quatro canções de safra recente dos Stooges: “Dead Rock Star”, “Loser”, “Little Electric Chair” e “Skull Ring” (2003), notoriamente razão de ser da reunião dos remanescentes vivos da formação clássica. Estas não fazem feio em meio aos standards máximos garageiros. O roteiro foi mais ou menos o mesmo apresentado no DVD Stooges Live In Detroit, já lançado no Brasil. Outro ponto alto da nova reencarnação dos Stooges se deve à participação de Mike Watt, baixista de técnica impecável e referência do indie rock americano por sua vasta contribuição à música independente do país, seja com o Minutemen, Firehose, empreitadas-solo ou mesmo as eventuais colaborações com terceiros as quais já integrou. Não são para qualquer um a oportunidade e o privilégio de tocar com seus mentores, menos ainda ser tratado de igual para igual, definitivamente. Parte do métier pop brasileiro que integrava os bastidores assistia à aula de rock ao lado do palco, até entre estes Buzz Osbourne, guitarrista dos Melvins e do Fantomas, um dos mais aplicados seguidores da linhagem da guitarra troglodita iniciada por Ron Asheton. Este, junto ao seu irmão batera Scott, deixou claro que não é só de vigor e espírito juvenis que se faz um bom barulho roqueiro. Pai da matéria, ele guiou o caos instrumental com sua guitarra econômica, sem que esta deixasse de ser poderosa. O mesmo vale para os batuques tribais de Scott Asheton, elementares em sua essência explosiva. No entanto, pouco disso seria válido sem a presença de Iggy Pop. Coroa quase sessentão, porém com forma e pique invejáveis a qualquer moleque roqueiro, é a nitroglicerina que fez das peripécias do quarteto original história. Prova incontestável de que o rock’n roll contempla a velhice em pleno século XXI (fala, Marceleza) e crooner de primeira grandeza, na linhagem popular capitaneada por Frank Sinatra, o que se confirma nos momentos mais intimistas de sua trajetória como artista solo, é no palco que apresenta sua faceta mais selvagem, a ponto de ter sido homenageado com uma caricatura impagável de animal roqueiro do personagem Piggy no semi-obscuro filme Get Crazy, “fábula” pop oitentista sobre o fechamento do legendário templo do rock Filmore East e celebração ao cenário musical protopunk, de comportamento incendiário inédito em situações absurdas que sucumbiu com a iminência da nauseabunda década de oitenta. Não é difícil imaginar o impacto da performance de Iggy Pop até mesmo entre aqueles desavisados que nunca ouviram falar dele. Enfim, o show do quinteto em palco, a despeito das equivocadas expectativas de parte da imprensa obviamente não apresentou nenhum número oriundo de seu terceiro álbum, Raw Power (1973). Escroto foi saber que dois profissionais de um dos maiores jornais do país não fizeram direito o dever de casa e evidenciaram seu despreparo ao externalizarem expectativas do tipo, sendo o Iggy & The Stooges circa 72 uma entidade musical completamente distinta dos Stooges originais agora rebatizados Iggy & The Stooges por uma mera questão de hierarquização de popularidades. Não foi à toa um deles ter sido chamado de cuzão, como atestou o próprio Iggy na única entrevista após o show publicada por uma revista nacional. Enfim, o show do quinteto, que também contou com participação do saxofonista Steve Mackay, só não foi melhor porque pecou pela previsibilidade, fator que a atração seguinte do festival, o Sonic Youth, tratou de consertar. Entretanto, atribuir qualquer demérito a um show de uma lenda rediviva como são os Stooges é reclamar de barriga cheia. E há um burburinho sobre uma possível vinda de Iggy Pop solo ao Brasil ainda em 2006, aí sim a nova geração de roqueiros alternativa receberia batismo suficiente para deixar de lado a rotineira musicalidade pelega e a bundamolice pop, distante da inócua assepsia comum aos vencedores do show de calouros.

Texto de Marcus Marçal
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