O SOM DA MÚSICA: JUKEBOX

Tuesday, May 09, 2006

JUKEBOX

Blowin’ in the Wind – Bob Dylan

No início da minha adolescência, minha família se mudou para outra cidade. Eu era um garoto de treze anos sem nada para fazer naquele lugar no meio do nada. Com o passar dos anos, o lugar se transformaria bastante, mas até então eu ainda não havia conseguido me adaptar à cidade. Além disso, pairava no ar um sotaque que me era até então inaudito no linguajar local e isso incomodava os ouvidos da “criança pobrema”.

Eu e meu irmão mais novo costumávamos “surfar” com pranchas de isopor e, quando o mar estava flat, tínhamos de inventar outras atividades para passar o tempo livre. Não conhecíamos muita gente pela área e com o inverno, a região praiana, ficava literalmente deserta. E nós dois perambulando por lá, cheios de gás pra fazer bagunça.

Até então dispunha em minhas mãos apenas a minha prancha de isopor e um violão Di Giorgio rachado. Era bem bonito e, além disso, a madeira era de primeira. E justamente pelo fato de o instrumento já ter sido reformado, ele acabou quebrando na lateral, quando acidentalmente colidi a frágil madeira na solidez de um dos pilares de minha cama. A partir de então, afinar o violão se tornou uma tarefa hercúlea porque a tensão não se mantinha uniforme em sua toda a estrutura. Se você afinava uma corda, desafinava outra. E aí até você conseguir adequar os sons, haja paciência. Mas provavelmente vem daí a minha apreciação por dissonâncias e sons “estranhos”.

Não tocava direito e como não sabia da existência de ninguém que se dispusesse a ensinar o instrumento na cidade, inventei de que iria aprender a tocar sozinho. Nem sempre dava pra treinar em casa porque, volta e meia, alguém reclamava do barulho e isso é capaz de te desestimular, ainda mais você sendo um recém-adolescente.

Foi aí que tive a idéia de treinar o violão na praia deserta. Ali não havia nenhuma restrição, independentemente do barulho ou sons esquisitos que eu seria capaz de fazer quando não sabia tocar nada. Uma tarde, eu vi na tevê um anúncio de uma revista de lições de guitarra. O garoto-propaganda era um legendário artesão pop que outrora fora guitar hero de uma legendária formação de rock progressivo nos anos 70: um grupo que pouca gente viu em ação, mas que até hoje provoca comentários, ainda que atualmente os envolvidos no projeto tirem sarro do som que faziam.

No reclame, havia um garoto forçosamente tentando fazer acordes no instrumento e aí chega o guitar hero lhe perguntando algo do tipo: “Poxa, legal! Mas antes você não vai aprender a tocar?” Putz... Durante um bom tempo, eu vivi escutando piadinhas dessas o tempo todo. “Cambadas de ‘filhas-da-puta’, um dia ainda aprendo a tocar direito... E esse sujeito ainda há de elogiar o meu som qualquer dia desses”, pensava eu, sereno como um legendário samurai-mirim do meio musical. Ahahah...

Comprei a revista. Ali havia algumas lições elementares e o primeiro capítulo de uma suposta história do rock’n roll. Mas no futuro, uma das minhas mais bacanas lembranças estaria dentro da fita cassete encartada na revista. Além de uma orientação oral para os exercícios contidos na publicação, entre elas um arranjo simplificado da peça clássica “Greensleeves”, também havia uma gravação de “Blowin’ in the Wind”, de Bob Dylan, cujas cifras para violão também estavam dispostas.

Depois de saber um pouco da história do bardo folk, eu tentei aprender sua canção. Seu canto estranho me cativou de uma forma inaudita, tanto é que só me daria conta da importância de sua música alguns anos depois. E de sua grandeza, só realmente me certificaria com o acúmulo dos anos. Vale lembrar que, em meados dos 80, suas motivações para fazer música em pleno boom mercadológico da música pop, denotavam certo recato, desproporcional à sua influência neste mesmo segmento.

Na época, pensei na maior das inocências que se este cara cantava “desafinado” daquele jeito, então eu também poderia, sem me dar conta de que se tratava de um dos intérpretes mais ousados da história da música. Isso para não entrarmos nos méritos de outras particularidades de seus múltiplos talentos: seja o de poeta lírico, prosador de ficção, cantor, ator, pintor ou compositor. Isso porque na rejeição do conceito comum que confunde o avanço das técnicas e mecânicas das formas artísticas com a evolução da própria arte, Dylan impôs sua persona artística acima do formalismo técnico de seu respectivo campo de atuação. Sempre reinventando sua própria verve artística pois seu coração está vivo e pulsa faceiro na corda bamba da ousadia estética e da reinvenção.

Neste primeiro contato oficial com sua arte, quis entender o que ele dizia e então fiz uma transcrição de letra da música munido dos rudimentares conhecimentos da língua inglesa típicos ao garoto de treze anos que eu era. O texto, apesar de repleto de metáforas, é direto. E a harmonia da música é tão simples que dificilmente um novato não conseguiria aprender a toca-la ao violão. Como havia um solo de harmônica no meio da canção, comprei também uma gaita-tonal barata. Se soprasse de um lado, o tom era em Ré Maior. E se soprasse pelo outro lado, o tom seria Sol Maior. Não cheguei sequer a vislumbrar a possibilidade de dominar o sincronismo de tocar violão e gaita naquela época, mas o lance era tentar tocar igualzinho.

Certo dia, eu estava na praia e as ondas do mar raivoso redemoinhavam a areia. Ali eu realmente me questionei a respeito de minha ausência de talento. Foi a primeira de muitas, muitas vezes. Mas o texto de Bob parecia dizer realmente alguma coisa significativa para aquele garoto desajeitado que queria rock.

“Quantas estradas um homem há de andar antes que você o possa chamá-lo como tal? E quantos mares uma pomba branca precisará cruzar antes de poder repousar na areia? E quanto tempo as balas de canhão irão voar antes de serem banidas para sempre? Quantas vezes um homem olhará para o alto antes de conseguir vislumbrar o céu? Sim e quantos ouvidos um homem deve possuir até que possa escutar o choro do povo? Quantos anos poderá existir uma montanha antes de ser varrida para o mar?
Sim, e quantos anos algumas pessoas podem existir antes de lhes ser permitida a liberdade? Quantas vezes um homem poderá virar a face fingindo que não vê?”.

Fui dormir aquela noite pensando nestes versos e no dia seguinte estava pronto para me esforçar mais e mais em direção às minhas metas. Música preencheria minha alma como muito pouca coisa deste mundo. Mas até quando? E ainda hoje, vinte anos depois, relembro o marulhar das ondas toda vez que ouço a versão lançada no álbum The Freewheelin' Bob Dylan. Eu ainda não havia me atentado a este respeito, mas a resposta, meu amigo, estava soprando no vento. Estava realmente no soprar das ondas que o mar me sussurrava aos ouvidos em meio ao redemoinhar na areia da praia.
Texto de Marcus Marçal originalmente escrito em 31/05/2005
Todos os direitos reservados ao autor. Não é permitida a reprodução deste texto de forma alguma, seja ela parcial ou integral, sem permissão prévia. Por favor, contate-me antes via e-mail.

1 Comments:

Blogger O SOM DA MÚSICA said...

teste!

6:26 PM  

Post a Comment

Subscribe to Post Comments [Atom]

<< Home



 

 



Sou Marcus Marçal, jornalista de profissão e músico de coração.

Veja bem, se esta é sua primeira visita, afirmo de antemão que, para usufruir dos textos deste blog, é necessário um mínimo de inteligência. Este blog contém reflexões sobre música, material ficcional, devaneios biográficos, desvarios em prosa, egotrips sonoras e até mesmo material de cunho jornalístico.

E, se você não é muito acostumado à leitura, provavelmente pode ter um pouco de dificuldades com a forma caótica com que as informações são despejadas neste espaço.

Gostaria de deixar claro que os referenciais sobre texto e música aqui dispostos são vastos e muitas das vezes antagônicos entre si. Por essa razão, narrativa-linear não é sobrenome deste espaço, entende?

Tendo isto em mente, fica mais fácil dialogarmos sobre nossos interesses em comum dispostos aqui, pois o entendimento de parte dos textos contidos neste blog não deve ser feito ao pé da letra. E se você por acaso tiver conhecimento ou mesmo noção das funções da linguagem então poderá usufruir mais adequadamente do material contido neste site, munido de ferramentas de responsabilidade de ordem exclusiva ao leitor.

Quero dizer que, apesar da minha formação como jornalista, apenas uma parcela pequena dos textos aqui expostos foi e é concebida com este intuito, o que me permite escrever sem maiores preocupações com formatos ou convenções. Geralmente escrevo o que me dá na telha e só depois eventualmente faço alguma revisão mais atenta, daí a razão de por essas e outras eu deixar como subtítulo para este O SOM DA MÚSICA o bordão VERBORRAGIA DE CÓDIGO-FONTE ABERTO COM VALIDADE RESTRITA, e também porque me reservo ao direito de minhas opiniões se transformarem com o passar do tempo.

Portanto, faço um pedido encarecidamente às pessoas dotadas de pensamento obtuso, aos fanáticos de todos os tipos, aos analfabetos funcionais e às aberrações do tipo: por gentileza, não percam seu tempo com minha leitura a fim de lhes poupar atenção dispensada indevidamente.

Aos leitores tradicionais e visitantes ocasionais com flexibilidade de raciocínio, peço minhas sinceras desculpas. Faço esse blá-blá-blá todo apenas para afastar qualquer pessoa com pouca inteligência. Mesmo porque tem tanta gente por aí que domina as normas da língua portuguesa, mas são praticamente analfabetos funcionais...


As seções do blog você encontra ao lado, sempre no post ÍNDICE DE SEÇÕES, e a partir dele fica fácil navegar por este site pessoal intitulado O SOM DA MÚSICA.

Sinta-se livre para expressar quaisquer opiniões a respeito dos textos contidos no blog, uma vez que de nada vale a pena esbravejar opiniões no cyber espaço sem o aval da resposta do interlocutor.

Espero que este seja um território livre para a discussão e expressão de opiniões, ainda que contrárias as minhas, acerca de nossa paixão pela música. Afinal, de nada valeria escutarmos discos, fazermos músicas, lermos textos, irmos a shows e vivermos nossas vidas sem que pudéssemos compartilhar nossas opiniões a respeito disso tudo.

Espero que você seja o tipo de leitor que aprecie a abordagem sobre música contida neste blog.


De qualquer forma, sejam todos bem-vindos! Sintam-se como se estivessem em casa.

Caso queira entrar em contato, meu email é marcus.marcal@yahoo.com.br.
Grande abraço!
Powered by Blogger