JUKEBOX VIII: “África Brasil (Zumbi)”
Muitas releituras já foram feitas para este clássico de Jorge Ben. O próprio cantor e compositor chegou a gravar duas versões diferentes da canção em dois álbuns dentre os mais importantes de sua discografia: “A Tábua de Esmeralda” (1974) e “África Brasil” (1976).
A primeira soa levemente “dopada” em meio à viagem conceitual esotérica do artista na ocasião, enquanto a segunda é repleta do balanço de música afro-brasileira setentista conforme o tom do disco como um todo ao qual ela faz parte.
Artistas de diferentes nichos como Caetano Veloso, Cidade Negra e Andrea Marquee já recriaram a música e obtiveram resultados variados. No entanto, todas elas soam de menor importância se comparadas às originais de Ben...
Ouvi muito Jorge Ben aleatoriamente em rádio AM nos anos 70. Era moleque e lembro que gostava da ginga das músicas e de seu cantar. Soava-me bem simples e direto. Mas não me recordava de “África Brasil” até ouvir a versão que o grupo paulista Skowa & A Máfia lançou em seu álbum de estréia “La Famiglia” (1989).
Zumbi é o senhor das guerras
Naquela época eu estava ainda incipientemente afeito à onda da mistura de funk com metal que então rolava no exterior, embora ainda não fosse pleno conhecedor dos trabalhos deste subgênero que logo ficaria tão em voga no início dos 90 aqui no Brasil. Na época, ainda não dominava a guitarra como gostaria, então a maioria das bandas e artistas que me chamavam a atenção tinha um perfil genérico de misturar levadas dançantes do instrumento com groove peso-pesado de uma cozinha bem entrosada. “Quem tem groove tem tudo”, resumiria outro fã de Ben alguns anos depois, você sabe!
Então por essas e outras razões, eu adorei o som do Skowa & A Máfia. O líder da banda, Skowa, era uma figura relativamente conhecida por seus trabalhos com o grupo Sossega Leão e outros artistas. Se não me engano, ele havia deixado de lado seu principal instrumento, o contrabaixo, para se aventurar como guitarrista band leader deste grupo com ênfase maior no funk rock.
A banda chegou a emplacar música em novela da rede Globo, a impagável “Amigo do Amigo”, e um dos carros-chefe de seu repertório era o underhit “Atropelamento & Fuga”, cover do Akira S e as Garotas que Erraram -- esta chegou a ser destaque em lista de melhores do ano da revista Bizz um ano antes do disco de “La Famiglia” ser lançado. Portanto, boas referências não faltavam...
E foi durante uma entrevista promocional do disco que o grupo concedeu a uma rádio carioca que ouvi pela primeira vez a releitura que eles fizeram para o tema de Jorge Ben.
Batuque afro no centenário da Abolição
Devidamente reverente às versões originais, o Skowa & A Máfia soube recriar conceitualmente a canção, como se esta fosse composta novamente, a partir do zero. Comparativamente, apenas a letra remete ao tema original e sua recriação a cargo do próprio Ben.
A versão do grupo começa com um rápido batuque percussivo de congas, o que me lembra imediatamente a um ponto de macumba em um terreiro ancestral -- condição de resistência reforçada pelas recentes comemorações dos cem anos da abolição da escravatura no ano anterior.
Após um rápido fraseado de baixo, o restante dos músicos adentra ao tema com peso característico de rock pesado sob uma base de funk com batucada afro. Os guitarristas da banda chegam a fazer trinados, como aqueles que o Iron Maiden eternizou na introdução de “Aces High”, mas com a rusticidade de timbre conforme o tema original pede.
Quando Skowa começa a cantar, é como se fosse algum sujeito casca-grossa e cheio de marra, líder de gangue (“A Máfia” é o nome da banda que secunda o cantor), chamando algum filho-da-puta pra porrada, para um devido acerto de contas de séculos. Os versos “Eu quero ver quando Zumbi chegar, eu quero ver. Eu quero ver o que vai acontecer, eu quero ver...” já antevêem a tensão que a música carrega em si em seu DNA histórico.
Em determinado momento ao final da música, o peso da banda de apoio se cala e Skowa canta apenas sob uma base percussiva de congas, reforçando aquele mesmo clima de terreiro de macumba mencionado anteriormente. “Aqui onde estão os homens, há um grande leilão. Dizem que nele há uma princesa à venda, que veio acorrentada junto com seus súditos em carros-de-boi... Aqui onde estão os homens: de um lado a cana de açúcar, do outro lado um imenso cafezal e ao centro senhores sentados vendo a colheita do algodão branco sendo colhida por mãos negras...” Nessa hora, o líder do grupo encadeia melodicamente estes versos com toda a verdade típica de quem realmente acredita no que está cantando. O ouvinte é incapaz de duvidar disso.
Aí é hora de a banda voltar à toda com peso mastodonte, enquanto um coro coletivo que parece carregar milhões de almas penadas do além ganha força à medida que canta os versos, apenas sublinhados melodicamente por Skowa: “Eu quero ver quando Zumbi chegar, eu quero ver! Eu quero ver o que vai acontecer, eu quero ver. Zumbi é o senhor DAS GUERRAS! Zumbi é o senhor DAS DEMANDAS. Quando Zumbi chega, é Zumbi é quem manda...”
Lembro de ter ficado chocado quando ouvi esta releitura pela primeira vez, experiência contextualizada anteriormente pelos integrantes da banda, afro-brasileiros, durante a entrevista, explicando a importância do tema, que fecha o álbum “La Famiglia”, e que, de uma informal jam session, acabou se tornando a música mais forte do disco de estréia da banda.
Disco de vinil em promoção
Assim que o programa acabou, precisei comprar o disco imediatamente e consegui encontrar o vinil em promoção, então recém lançado, em um supermercado --nos tempos em que a indústria do disco ainda se ajeitava para o grande boom de vendagem a partir da popularização do Compact Disc.
Lacrada, a bolacha vinha com os dizeres “Com o sucesso ‘Amigo do Amigo’ da novela...” em um selo colado sob o plástico que protegia o material, mas o disco me chamou ainda mais a atenção, pois uma das fotos do encarte trazia a silhueta de Skowa fumando um charuto, o que me remeteu imediatamente a tal “máfia” que a banda trazia no nome e também ao terreiro de macumba que a sonoridade da releitura de “África Brasil” me lembrava. Sim, eu era --e ainda sou-- um sujeito dotado de bastante imaginação...
Enfim, eu hoje me recordo que escutei bastante aquele vinil, repleto de boas letras sob um instrumental dançante de big band. Mas até hoje me lembro aleatoriamente desta versão, que me vem à mente naturalmente, sem que eu me esforce para lembrá-la. E em se tratando de um clássico tão manjado da música popular brasileira, humildemente eu lanço mão deste texto para lembrar da grandeza desta versão, tão pouco conhecida.
Vale a procura, ainda mais porque o tema foi regravado em uma época em que a obra de Jorge Ben (Jor) não havia se tornado carne-de-vaca, após sua associação com o publicitário Washington Olivetto e o novo boom mercadológico que sua carreira alcançou em quase meados da década seguinte, ocasião em que o compositor foi descoberto por novas gerações.
A primeira soa levemente “dopada” em meio à viagem conceitual esotérica do artista na ocasião, enquanto a segunda é repleta do balanço de música afro-brasileira setentista conforme o tom do disco como um todo ao qual ela faz parte.
Artistas de diferentes nichos como Caetano Veloso, Cidade Negra e Andrea Marquee já recriaram a música e obtiveram resultados variados. No entanto, todas elas soam de menor importância se comparadas às originais de Ben...
Ouvi muito Jorge Ben aleatoriamente em rádio AM nos anos 70. Era moleque e lembro que gostava da ginga das músicas e de seu cantar. Soava-me bem simples e direto. Mas não me recordava de “África Brasil” até ouvir a versão que o grupo paulista Skowa & A Máfia lançou em seu álbum de estréia “La Famiglia” (1989).
Zumbi é o senhor das guerras
Naquela época eu estava ainda incipientemente afeito à onda da mistura de funk com metal que então rolava no exterior, embora ainda não fosse pleno conhecedor dos trabalhos deste subgênero que logo ficaria tão em voga no início dos 90 aqui no Brasil. Na época, ainda não dominava a guitarra como gostaria, então a maioria das bandas e artistas que me chamavam a atenção tinha um perfil genérico de misturar levadas dançantes do instrumento com groove peso-pesado de uma cozinha bem entrosada. “Quem tem groove tem tudo”, resumiria outro fã de Ben alguns anos depois, você sabe!
Então por essas e outras razões, eu adorei o som do Skowa & A Máfia. O líder da banda, Skowa, era uma figura relativamente conhecida por seus trabalhos com o grupo Sossega Leão e outros artistas. Se não me engano, ele havia deixado de lado seu principal instrumento, o contrabaixo, para se aventurar como guitarrista band leader deste grupo com ênfase maior no funk rock.
A banda chegou a emplacar música em novela da rede Globo, a impagável “Amigo do Amigo”, e um dos carros-chefe de seu repertório era o underhit “Atropelamento & Fuga”, cover do Akira S e as Garotas que Erraram -- esta chegou a ser destaque em lista de melhores do ano da revista Bizz um ano antes do disco de “La Famiglia” ser lançado. Portanto, boas referências não faltavam...
E foi durante uma entrevista promocional do disco que o grupo concedeu a uma rádio carioca que ouvi pela primeira vez a releitura que eles fizeram para o tema de Jorge Ben.
Batuque afro no centenário da Abolição
Devidamente reverente às versões originais, o Skowa & A Máfia soube recriar conceitualmente a canção, como se esta fosse composta novamente, a partir do zero. Comparativamente, apenas a letra remete ao tema original e sua recriação a cargo do próprio Ben.
A versão do grupo começa com um rápido batuque percussivo de congas, o que me lembra imediatamente a um ponto de macumba em um terreiro ancestral -- condição de resistência reforçada pelas recentes comemorações dos cem anos da abolição da escravatura no ano anterior.
Após um rápido fraseado de baixo, o restante dos músicos adentra ao tema com peso característico de rock pesado sob uma base de funk com batucada afro. Os guitarristas da banda chegam a fazer trinados, como aqueles que o Iron Maiden eternizou na introdução de “Aces High”, mas com a rusticidade de timbre conforme o tema original pede.
Quando Skowa começa a cantar, é como se fosse algum sujeito casca-grossa e cheio de marra, líder de gangue (“A Máfia” é o nome da banda que secunda o cantor), chamando algum filho-da-puta pra porrada, para um devido acerto de contas de séculos. Os versos “Eu quero ver quando Zumbi chegar, eu quero ver. Eu quero ver o que vai acontecer, eu quero ver...” já antevêem a tensão que a música carrega em si em seu DNA histórico.
Em determinado momento ao final da música, o peso da banda de apoio se cala e Skowa canta apenas sob uma base percussiva de congas, reforçando aquele mesmo clima de terreiro de macumba mencionado anteriormente. “Aqui onde estão os homens, há um grande leilão. Dizem que nele há uma princesa à venda, que veio acorrentada junto com seus súditos em carros-de-boi... Aqui onde estão os homens: de um lado a cana de açúcar, do outro lado um imenso cafezal e ao centro senhores sentados vendo a colheita do algodão branco sendo colhida por mãos negras...” Nessa hora, o líder do grupo encadeia melodicamente estes versos com toda a verdade típica de quem realmente acredita no que está cantando. O ouvinte é incapaz de duvidar disso.
Aí é hora de a banda voltar à toda com peso mastodonte, enquanto um coro coletivo que parece carregar milhões de almas penadas do além ganha força à medida que canta os versos, apenas sublinhados melodicamente por Skowa: “Eu quero ver quando Zumbi chegar, eu quero ver! Eu quero ver o que vai acontecer, eu quero ver. Zumbi é o senhor DAS GUERRAS! Zumbi é o senhor DAS DEMANDAS. Quando Zumbi chega, é Zumbi é quem manda...”
Lembro de ter ficado chocado quando ouvi esta releitura pela primeira vez, experiência contextualizada anteriormente pelos integrantes da banda, afro-brasileiros, durante a entrevista, explicando a importância do tema, que fecha o álbum “La Famiglia”, e que, de uma informal jam session, acabou se tornando a música mais forte do disco de estréia da banda.
Disco de vinil em promoção
Assim que o programa acabou, precisei comprar o disco imediatamente e consegui encontrar o vinil em promoção, então recém lançado, em um supermercado --nos tempos em que a indústria do disco ainda se ajeitava para o grande boom de vendagem a partir da popularização do Compact Disc.
Lacrada, a bolacha vinha com os dizeres “Com o sucesso ‘Amigo do Amigo’ da novela...” em um selo colado sob o plástico que protegia o material, mas o disco me chamou ainda mais a atenção, pois uma das fotos do encarte trazia a silhueta de Skowa fumando um charuto, o que me remeteu imediatamente a tal “máfia” que a banda trazia no nome e também ao terreiro de macumba que a sonoridade da releitura de “África Brasil” me lembrava. Sim, eu era --e ainda sou-- um sujeito dotado de bastante imaginação...
Enfim, eu hoje me recordo que escutei bastante aquele vinil, repleto de boas letras sob um instrumental dançante de big band. Mas até hoje me lembro aleatoriamente desta versão, que me vem à mente naturalmente, sem que eu me esforce para lembrá-la. E em se tratando de um clássico tão manjado da música popular brasileira, humildemente eu lanço mão deste texto para lembrar da grandeza desta versão, tão pouco conhecida.
Vale a procura, ainda mais porque o tema foi regravado em uma época em que a obra de Jorge Ben (Jor) não havia se tornado carne-de-vaca, após sua associação com o publicitário Washington Olivetto e o novo boom mercadológico que sua carreira alcançou em quase meados da década seguinte, ocasião em que o compositor foi descoberto por novas gerações.
Contatos pelo email marcus.marcal@uol.com.br
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