ENTREVISTÃO XVIII: Mutantes faz 40 anos em 2008 e lança música inédita; leia entrevista
06/04/2008 - 00h36
MARCUS MARÇAL
http://musica.uol.com.br/ultnot/2008/04/06/ult89u8871.jhtm
No dia 24 de abril, o Mutantes lançará na Internet a primeira música inédita do grupo em 32 anos. Para promover o lançamento, a banda também se apresenta ao vivo neste mesmo dia em uma festa fechada no Salão dos Arcos, no subsolo do Teatro Municipal de São Paulo.
Reverenciado internacionalmente, o Mutantes se reuniu em 2006 para uma festejada apresentação em Londres, que rendeu o disco "Mutantes ao vivo - Barbican Theatre". Nessa época, o grupo contava com Arnaldo Baptista e Zélia Duncan, que debandaram ao final de uma exaustiva turnê de dois anos --antes de começarem a trabalhar em um álbum de inéditas, que será lançado em 2008, conforme declaração do atual líder da banda, o guitarrista Sérgio Dias.
Como o próprio nome do grupo indica, o Mutantes já passou por diversas transformações, assim como sua música. Foi criado em 1965 por Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee, que marcaram presença no cenário tropicalista, ao injetarem jovialidade às empreitadas musicais dos principais expoentes da época. Acompanharam Caetano Veloso e Gilberto Gil em festivais da canção e inauguraram definitivamente uma maneira de se fazer música pop jovem e cosmopolita no Brasil. Com o tempo, a inocência dos primeiros anos deu lugar a uma sofisticação musical cada vez maior, chegando ao ápice nos álbuns "O A e O Z" (gravado em 1973 e somente lançado em 1992) e "Tudo Foi Feito Pelo Sol" (1974), seu mais recente trabalho de estúdio. Ambos são objeto de culto de colecionadores de disco internacionalmente.
Na atual reencarnação dos Mutantes, Sérgio Dias é acompanhado por Dinho Leme (bateria), Henrique Peters (teclados, flauta doce e vocais), Vitor Trida (teclados, flautas, viola, cello e vocal), Vinícius Junqueira (baixo), Fábio Recco e Bia Mendes (vocais).
Em entrevista ao UOL, o guitarrista falou sobre o significado do retorno do grupo para sua carreira. "Essa vivência com os Mutantes tem sido para mim um renascimento, musicalmente e espiritualmente falando", declarou.
UOL - A formação atual dos Mutantes trabalha em material inédito?
SÉRGIO DIAS - Ainda não temos o álbum pronto, mas vamos disponibilizar gratuitamente na Internet a primeira música de trabalho desta nova fase da banda: "Mutantes Depois". É o nosso primeiro passo, afinal de contas faz 40 anos que lançamos nosso primeiro disco e ainda lançaremos neste ano um disco de inéditas --o que não fazemos há muito tempo. Essa música nova é uma composição minha, o pronunciamento que o Mutantes precisava fazer hoje. Basicamente "Mutantes Depois" é sobre o que mantém o espírito da banda vivo, mas é ainda mais, pois o que sustentou a lenda viva foram os fãs, os novos Mutantes e todos que se envolveram nesses acontecimentos.
UOL - O que os fãs dos Mutantes podem esperar do material novo do grupo?
SÉRGIO DIAS - Compusemos aproximadamente nove canções inéditas, o que já é quase um álbum novo, e estamos gravando esse material há dois meses. O conceito principal das novas músicas é a total liberdade de expressão e criação. É basicamente a busca pelo o que não é óbvio. "Mutantes Depois" é uma canção muito significativa, pois representa o que queremos dizer atualmente, tanto lírica quanto musicalmente. Ela não vai soar como uma música de 1960 ou algo do gênero, pois estamos no século 21 e até mesmo a guitarra que toco hoje em dia é um novo instrumento --construído de forma artesanal especialmente para esta nova fase. É a nova "Guitarra de Ouro" dos Mutantes e tem um som completamente diferente. Para vê-la, basta visitar nosso site oficial. "Mutantes Depois" tem a participação do cantor Devendra Banhart, que gravou sua voz com o efeito rotativo de uma caixa Leslie. Antes não adiantava muito falarmos sobre o futuro sem termos algo para mostrar. E hoje temos algo novo a mostrar. E não há melhor forma de o Mutantes se comunicar, a não ser com música.
UOL - A Internet é um veículo adequado para vocês disponibilizarem material inédito?
SÉRGIO DIAS - Com certeza! Para nós, a Internet é muito importante. Essa velocidade é genial porque as coisas hoje acontecem muito mais rapidamente em termos de comunicação --sem comparação a qualquer coisa que existiu antes. A Internet certamente é um meio com o qual queremos trabalhar e muito. Disponibilizaremos essa música nova no dia 22 e o mundo inteiro terá acesso a ela. Poder fazer isso é genial!
UOL - Como foi a contribuição de Tom Zé para algumas das novas músicas dos Mutantes?
SÉRGIO DIAS - Estamos fazendo várias músicas juntos. Chego a cair de costas com as coisas que ele faz. Tom Zé é o parceiro que eu pedi a Deus, pois nem precisamos nos falar e a coisa vai fluindo. É um negócio estupendo pois o conheci ainda criança e naquela época não tinha bagagem para poder conversar com ele. Eu era apenas um garoto e só tocava, mas hoje me sinto um pouco mais próximo da idade dele. Tenho 57 anos e agora é possível nós conversarmos. E estamos compondo canções estupendas. Às vezes, são músicas dele em cima de letras minhas, algo que eu jamais sonharia, porque o óbvio seria naturalmente Tom Zé fazer a letra.
UOL - Ficou alguma coisa mal-resolvida na relação entre você, Zélia e Arnaldo?
SÉRGIO DIAS - As coisas aconteceram e foram uns seis ou sete meses de luto, mas agora não quero mais perder tempo pensando nisso. Vivemos nossa realidade atual e está sendo muito divertido. Então eu já passei pelo momento de saudade, perda e todas essas coisas. Mas não vou deixar isso acontecer, em hipótese alguma, nessa nova encarnação da banda. A Zélia será eternamente minha amiga e Arnaldo meu irmão e amigo, mas não se pode dirigir pessoas adultas, e agora eles não fazem mais parte dos Mutantes, infelizmente. Não aconteceu nenhum incidente que tenha ficado mal-resolvido na minha relação com eles. Foi uma questão de aspirações artísticas em âmbito particular, somadas também ao cansaço, pois a turnê foi muito pesada, principalmente para o Arnaldo. Mas a excursão foi muito legal para ele, que se desenvolveu maravilhosamente no decorrer da turnê, e isso foi o melhor de tudo! O Arnaldo está bem, mas infelizmente não tenho muito acesso a ele. Acredito que o livro que ele está lançando agora ("Rebelde Entre os Rebeldes") seja estupendo. Levando em conta o leitor voraz de ficção científica e o gênio que ele era, deve ser uma coisa maravilhosa. Quando enviei recentemente para imprensa um comunicado sobre Zélia e Arnaldo, acho que as pessoas não entenderam bem e precisei fazer uma retificação. Não rolou nenhuma saia-justa entre nós, nunca deixaria as coisas chegarem a esse ponto.
UOL - Fazendo um exercício de imaginação, como você conceberia um disco dos Mutantes em 2008, contando com integrantes da formação clássica do grupo como Arnaldo, Rita e Liminha?
SÉRGIO DIAS - Acho que seria exatamente como está acontecendo agora porque as pessoas que fazem parte dos Mutantes são o que conheço de mais vanguardista hoje em dia. Portanto, eu não vejo muita diferença em termos de conceito de criação, pois temos agora o que basicamente dispúnhamos naquela época. Considero os novos Mutantes estupendos e nada está sendo dirigido por mim, pois eles tocam o que eles querem --afinal somos uma banda. Por exemplo: eu não faço um baixo e depois ensino ao Vinícius como tocar. Ele está fazendo suas próprias linhas de baixo, como o Liminha também faria. E isso tem a ver com nosso histórico da contribuição coletiva no processo criativo do grupo. Também é fenomenal o que o Dinho está fazendo hoje em dia. As levadas de bateria que ele criou para "Mutantes Depois" são impressionantes. Eu havia programado uma bateria eletrônica, como ferramenta de trabalho somente para poder elaborar a música, e fiquei impressionado quando ele foi tocar realmente. Eu sou bom de programação, mas o Dinho me deu um nó na cabeça com as levadas que criou. Ele é como o melhor vinho que você possa imaginar ou a safra da Coca-Cola de 1974, em Paris, que também era estupenda (rindo). E de toda essa turma nova que está tocando comigo, também destaco o Vitor Trida, que ninguém sabe quem é e subiu ao palco pela primeira vez no Barbican, em Londres, no primeiro show da volta dos Mutantes. As pessoas não o conhecem e não têm idéia do que ele faz, de sua profundidade musical e do nível de abertura e conhecimento cultural que tem. Essas coisas contribuem para nossa nova identidade.
UOL - A fase progressiva dos Mutantes é muito subestimada?
SÉRGIO DIAS - O nome progressivo ficou muito cunhado como algo rançoso pela própria imprensa brasileira. Isso porque os caras focalizaram o gênero numa época decadente e agora ninguém pensa que progressivo no começo era, na realidade, Gentle Giant ou Mahavishnu Orchestra com John McLaughlin no álbum "The Inner Mounting Flame" (1971). E esse progresso musical gerou o fusion. Portanto, podemos dizer que Beatles também era uma banda progressiva. Um exemplo da tendência progressista no trabalho dos Beatles é a música "Tomorrow Never Knows", do álbum "Revolver" (1966). Que música é aquela? Se eu for tentar fazer aquilo, eu não consigo! O cunho que ficou do rock progressivo é aquela coisa pejorativa da utilização de muitos teclados, de Yes, mas a história não é bem assim. Outro exemplo é o King Crimson, outra banda completamente vanguarda, assim como Frank Zappa também era. Como eu poderia classificá-los? Música boa. E eram nomes extremamente progressistas. E se alguém pega um disco nosso como "Tudo Foi Feito Pelo Sol", vai perceber que não tem nada ver com banda alguma lá de fora. É um trabalho único e muito brasileiro.
UOL - Como você lida com o fato de que alguns de seus trabalhos mais ousados musicalmente serem, em parte, considerados como obra de tamanho menor em comparação à fase pop dos Mutantes?
SÉRGIO DIAS - Acho que existe gosto para tudo. Tem pessoas que veneram o álbum "O A e o Z", outras o "Tudo Foi Feito Pelo Sol" ou até mesmo uma música como "Anjos do Sul", de "Mutantes ao Vivo" (1976). Mas acho que, no contexto geral, a questão que separa essas coisas não se restringe a um estilo ou pessoas --e sim à quebra de um movimento cultural que foi interrompido por um golpe de estado que aconteceu no Brasil e à conseqüente dilapidação da cultura no país. Então não mantínhamos mais contato com as pessoas como anteriormente.
UOL - Até que ponto a situação política interferiu no panorama cultural do qual o Mutantes fazia parte?
SÉRGIO DIAS - Foi uma coisa completamente arbitrária e, de repente, você podia ir para a cadeia. Quando fomos com os Mutantes para a Itália em 1977, em Milão, eu conheci os caras que lá estavam exilados. Por exemplo, o grupo Aria me convidou para tocar com eles e eu tive que pensar duas vezes porque poderia acontecer de não permitirem minha volta ao Brasil, pois eles haviam gravado o hino comunista ou algo do tipo. No Brasil era uma barra pesada e tudo o que aconteceu, principalmente com as gerações posteriores, foi um estupro cultural. E o pior é que nós sofremos isso tudo e acabamos nos acostumando a essas coisas. Hoje em dia nós nem percebemos o resultado disso e achamos normal vivermos nosso cotidiano sem reclamar, sem ir às ruas, pois não se faz mais protestos de rua como em 1968, como acontecia com os estudantes na França. E eu vivi isso lá! Agora aqui, em relação à nossa questão de nossa situação de segurança, é inadmissível que São Paulo, uma cidade que gera 30 ou 40% do PIB do Brasil, não consiga resolver a questão da violência. Então ficamos reféns do medo e de um "AI-6" imposto por nós mesmos, porque ficamos dentro de casa e, ao andarmos pelas ruas, raramente você encontra uma pessoa com quem você possa sustentar o olhar. Esse medo que existe dentro de todos hoje é uma coisa que foi plantada. E é horrível viver isso e ver o que resultou daquele golpe de estado. É uma pena! Hoje em dia estamos vivendo uma situação absurda. Não dá para ignorarmos a política e tem até uma música que estou fazendo com o Tom Zé que começa assim: "Coitado do Brasil...". Nós somos muito imperfeitos e precisamos passar por todas estas questões, como uma criança que vai para a escola no primeiro dia e tem o carinha forte que quer bater no garoto menor.
MARCUS MARÇAL
http://musica.uol.com.br/ultnot/2008/04/06/ult89u8871.jhtm
No dia 24 de abril, o Mutantes lançará na Internet a primeira música inédita do grupo em 32 anos. Para promover o lançamento, a banda também se apresenta ao vivo neste mesmo dia em uma festa fechada no Salão dos Arcos, no subsolo do Teatro Municipal de São Paulo.
Reverenciado internacionalmente, o Mutantes se reuniu em 2006 para uma festejada apresentação em Londres, que rendeu o disco "Mutantes ao vivo - Barbican Theatre". Nessa época, o grupo contava com Arnaldo Baptista e Zélia Duncan, que debandaram ao final de uma exaustiva turnê de dois anos --antes de começarem a trabalhar em um álbum de inéditas, que será lançado em 2008, conforme declaração do atual líder da banda, o guitarrista Sérgio Dias.
Como o próprio nome do grupo indica, o Mutantes já passou por diversas transformações, assim como sua música. Foi criado em 1965 por Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee, que marcaram presença no cenário tropicalista, ao injetarem jovialidade às empreitadas musicais dos principais expoentes da época. Acompanharam Caetano Veloso e Gilberto Gil em festivais da canção e inauguraram definitivamente uma maneira de se fazer música pop jovem e cosmopolita no Brasil. Com o tempo, a inocência dos primeiros anos deu lugar a uma sofisticação musical cada vez maior, chegando ao ápice nos álbuns "O A e O Z" (gravado em 1973 e somente lançado em 1992) e "Tudo Foi Feito Pelo Sol" (1974), seu mais recente trabalho de estúdio. Ambos são objeto de culto de colecionadores de disco internacionalmente.
Na atual reencarnação dos Mutantes, Sérgio Dias é acompanhado por Dinho Leme (bateria), Henrique Peters (teclados, flauta doce e vocais), Vitor Trida (teclados, flautas, viola, cello e vocal), Vinícius Junqueira (baixo), Fábio Recco e Bia Mendes (vocais).
Em entrevista ao UOL, o guitarrista falou sobre o significado do retorno do grupo para sua carreira. "Essa vivência com os Mutantes tem sido para mim um renascimento, musicalmente e espiritualmente falando", declarou.
UOL - A formação atual dos Mutantes trabalha em material inédito?
SÉRGIO DIAS - Ainda não temos o álbum pronto, mas vamos disponibilizar gratuitamente na Internet a primeira música de trabalho desta nova fase da banda: "Mutantes Depois". É o nosso primeiro passo, afinal de contas faz 40 anos que lançamos nosso primeiro disco e ainda lançaremos neste ano um disco de inéditas --o que não fazemos há muito tempo. Essa música nova é uma composição minha, o pronunciamento que o Mutantes precisava fazer hoje. Basicamente "Mutantes Depois" é sobre o que mantém o espírito da banda vivo, mas é ainda mais, pois o que sustentou a lenda viva foram os fãs, os novos Mutantes e todos que se envolveram nesses acontecimentos.
UOL - O que os fãs dos Mutantes podem esperar do material novo do grupo?
SÉRGIO DIAS - Compusemos aproximadamente nove canções inéditas, o que já é quase um álbum novo, e estamos gravando esse material há dois meses. O conceito principal das novas músicas é a total liberdade de expressão e criação. É basicamente a busca pelo o que não é óbvio. "Mutantes Depois" é uma canção muito significativa, pois representa o que queremos dizer atualmente, tanto lírica quanto musicalmente. Ela não vai soar como uma música de 1960 ou algo do gênero, pois estamos no século 21 e até mesmo a guitarra que toco hoje em dia é um novo instrumento --construído de forma artesanal especialmente para esta nova fase. É a nova "Guitarra de Ouro" dos Mutantes e tem um som completamente diferente. Para vê-la, basta visitar nosso site oficial. "Mutantes Depois" tem a participação do cantor Devendra Banhart, que gravou sua voz com o efeito rotativo de uma caixa Leslie. Antes não adiantava muito falarmos sobre o futuro sem termos algo para mostrar. E hoje temos algo novo a mostrar. E não há melhor forma de o Mutantes se comunicar, a não ser com música.
UOL - A Internet é um veículo adequado para vocês disponibilizarem material inédito?
SÉRGIO DIAS - Com certeza! Para nós, a Internet é muito importante. Essa velocidade é genial porque as coisas hoje acontecem muito mais rapidamente em termos de comunicação --sem comparação a qualquer coisa que existiu antes. A Internet certamente é um meio com o qual queremos trabalhar e muito. Disponibilizaremos essa música nova no dia 22 e o mundo inteiro terá acesso a ela. Poder fazer isso é genial!
UOL - Como foi a contribuição de Tom Zé para algumas das novas músicas dos Mutantes?
SÉRGIO DIAS - Estamos fazendo várias músicas juntos. Chego a cair de costas com as coisas que ele faz. Tom Zé é o parceiro que eu pedi a Deus, pois nem precisamos nos falar e a coisa vai fluindo. É um negócio estupendo pois o conheci ainda criança e naquela época não tinha bagagem para poder conversar com ele. Eu era apenas um garoto e só tocava, mas hoje me sinto um pouco mais próximo da idade dele. Tenho 57 anos e agora é possível nós conversarmos. E estamos compondo canções estupendas. Às vezes, são músicas dele em cima de letras minhas, algo que eu jamais sonharia, porque o óbvio seria naturalmente Tom Zé fazer a letra.
UOL - Ficou alguma coisa mal-resolvida na relação entre você, Zélia e Arnaldo?
SÉRGIO DIAS - As coisas aconteceram e foram uns seis ou sete meses de luto, mas agora não quero mais perder tempo pensando nisso. Vivemos nossa realidade atual e está sendo muito divertido. Então eu já passei pelo momento de saudade, perda e todas essas coisas. Mas não vou deixar isso acontecer, em hipótese alguma, nessa nova encarnação da banda. A Zélia será eternamente minha amiga e Arnaldo meu irmão e amigo, mas não se pode dirigir pessoas adultas, e agora eles não fazem mais parte dos Mutantes, infelizmente. Não aconteceu nenhum incidente que tenha ficado mal-resolvido na minha relação com eles. Foi uma questão de aspirações artísticas em âmbito particular, somadas também ao cansaço, pois a turnê foi muito pesada, principalmente para o Arnaldo. Mas a excursão foi muito legal para ele, que se desenvolveu maravilhosamente no decorrer da turnê, e isso foi o melhor de tudo! O Arnaldo está bem, mas infelizmente não tenho muito acesso a ele. Acredito que o livro que ele está lançando agora ("Rebelde Entre os Rebeldes") seja estupendo. Levando em conta o leitor voraz de ficção científica e o gênio que ele era, deve ser uma coisa maravilhosa. Quando enviei recentemente para imprensa um comunicado sobre Zélia e Arnaldo, acho que as pessoas não entenderam bem e precisei fazer uma retificação. Não rolou nenhuma saia-justa entre nós, nunca deixaria as coisas chegarem a esse ponto.
UOL - Fazendo um exercício de imaginação, como você conceberia um disco dos Mutantes em 2008, contando com integrantes da formação clássica do grupo como Arnaldo, Rita e Liminha?
SÉRGIO DIAS - Acho que seria exatamente como está acontecendo agora porque as pessoas que fazem parte dos Mutantes são o que conheço de mais vanguardista hoje em dia. Portanto, eu não vejo muita diferença em termos de conceito de criação, pois temos agora o que basicamente dispúnhamos naquela época. Considero os novos Mutantes estupendos e nada está sendo dirigido por mim, pois eles tocam o que eles querem --afinal somos uma banda. Por exemplo: eu não faço um baixo e depois ensino ao Vinícius como tocar. Ele está fazendo suas próprias linhas de baixo, como o Liminha também faria. E isso tem a ver com nosso histórico da contribuição coletiva no processo criativo do grupo. Também é fenomenal o que o Dinho está fazendo hoje em dia. As levadas de bateria que ele criou para "Mutantes Depois" são impressionantes. Eu havia programado uma bateria eletrônica, como ferramenta de trabalho somente para poder elaborar a música, e fiquei impressionado quando ele foi tocar realmente. Eu sou bom de programação, mas o Dinho me deu um nó na cabeça com as levadas que criou. Ele é como o melhor vinho que você possa imaginar ou a safra da Coca-Cola de 1974, em Paris, que também era estupenda (rindo). E de toda essa turma nova que está tocando comigo, também destaco o Vitor Trida, que ninguém sabe quem é e subiu ao palco pela primeira vez no Barbican, em Londres, no primeiro show da volta dos Mutantes. As pessoas não o conhecem e não têm idéia do que ele faz, de sua profundidade musical e do nível de abertura e conhecimento cultural que tem. Essas coisas contribuem para nossa nova identidade.
UOL - A fase progressiva dos Mutantes é muito subestimada?
SÉRGIO DIAS - O nome progressivo ficou muito cunhado como algo rançoso pela própria imprensa brasileira. Isso porque os caras focalizaram o gênero numa época decadente e agora ninguém pensa que progressivo no começo era, na realidade, Gentle Giant ou Mahavishnu Orchestra com John McLaughlin no álbum "The Inner Mounting Flame" (1971). E esse progresso musical gerou o fusion. Portanto, podemos dizer que Beatles também era uma banda progressiva. Um exemplo da tendência progressista no trabalho dos Beatles é a música "Tomorrow Never Knows", do álbum "Revolver" (1966). Que música é aquela? Se eu for tentar fazer aquilo, eu não consigo! O cunho que ficou do rock progressivo é aquela coisa pejorativa da utilização de muitos teclados, de Yes, mas a história não é bem assim. Outro exemplo é o King Crimson, outra banda completamente vanguarda, assim como Frank Zappa também era. Como eu poderia classificá-los? Música boa. E eram nomes extremamente progressistas. E se alguém pega um disco nosso como "Tudo Foi Feito Pelo Sol", vai perceber que não tem nada ver com banda alguma lá de fora. É um trabalho único e muito brasileiro.
UOL - Como você lida com o fato de que alguns de seus trabalhos mais ousados musicalmente serem, em parte, considerados como obra de tamanho menor em comparação à fase pop dos Mutantes?
SÉRGIO DIAS - Acho que existe gosto para tudo. Tem pessoas que veneram o álbum "O A e o Z", outras o "Tudo Foi Feito Pelo Sol" ou até mesmo uma música como "Anjos do Sul", de "Mutantes ao Vivo" (1976). Mas acho que, no contexto geral, a questão que separa essas coisas não se restringe a um estilo ou pessoas --e sim à quebra de um movimento cultural que foi interrompido por um golpe de estado que aconteceu no Brasil e à conseqüente dilapidação da cultura no país. Então não mantínhamos mais contato com as pessoas como anteriormente.
UOL - Até que ponto a situação política interferiu no panorama cultural do qual o Mutantes fazia parte?
SÉRGIO DIAS - Foi uma coisa completamente arbitrária e, de repente, você podia ir para a cadeia. Quando fomos com os Mutantes para a Itália em 1977, em Milão, eu conheci os caras que lá estavam exilados. Por exemplo, o grupo Aria me convidou para tocar com eles e eu tive que pensar duas vezes porque poderia acontecer de não permitirem minha volta ao Brasil, pois eles haviam gravado o hino comunista ou algo do tipo. No Brasil era uma barra pesada e tudo o que aconteceu, principalmente com as gerações posteriores, foi um estupro cultural. E o pior é que nós sofremos isso tudo e acabamos nos acostumando a essas coisas. Hoje em dia nós nem percebemos o resultado disso e achamos normal vivermos nosso cotidiano sem reclamar, sem ir às ruas, pois não se faz mais protestos de rua como em 1968, como acontecia com os estudantes na França. E eu vivi isso lá! Agora aqui, em relação à nossa questão de nossa situação de segurança, é inadmissível que São Paulo, uma cidade que gera 30 ou 40% do PIB do Brasil, não consiga resolver a questão da violência. Então ficamos reféns do medo e de um "AI-6" imposto por nós mesmos, porque ficamos dentro de casa e, ao andarmos pelas ruas, raramente você encontra uma pessoa com quem você possa sustentar o olhar. Esse medo que existe dentro de todos hoje é uma coisa que foi plantada. E é horrível viver isso e ver o que resultou daquele golpe de estado. É uma pena! Hoje em dia estamos vivendo uma situação absurda. Não dá para ignorarmos a política e tem até uma música que estou fazendo com o Tom Zé que começa assim: "Coitado do Brasil...". Nós somos muito imperfeitos e precisamos passar por todas estas questões, como uma criança que vai para a escola no primeiro dia e tem o carinha forte que quer bater no garoto menor.
Contatos pelo email marcus.marcal@uol.com.br
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