DE ORELHADA VI
Barulho e Sensibilidade Pop
Murray Street, Sonic Youth (Universal Music)
16º álbum da banda mais alternativa do cenário mainstream, este trabalho foi concebido pelo quinteto como uma opereta dedicada à “parte baixa” de Manhattan, trecho de uma trilogia sobre a tradição cultural do lugar iniciada com o sombrio antecessor NYC Ghosts & Flowers. Desde o título da obra, o espectro do atentado de 11 setembro dá as caras neste trabalho. O nome do play alude à rua onde fica o estúdio no qual gravaram o disco, a poucos quarteirões do que foi um dia o World Trade Center.
Vale lembrar que a banda quase foi afetada pelo incidente já que um dos motores dos aviões que derrubaram as torres gêmeas caiu bem próximo ao local. Por sorte, apenas Jim O’Rourke, agora integrado definitivamente como o quinto integrante da banda, estava por lá, tirando uma soneca e felizmente nada grave acometeu a banda. Por essas e outras, uma atmosfera ensolarada, redentora, dá um colorido todo especial ao disco – contraponto ao pesadelo que assolou a região desde então.
Ao contrário de outras encarnações em disco, nas quais abriram econômicas concessões a uma sonoridade mais populista em relação aos parâmetros indie, a onda do atual quinteto reaparece bem mais arejada, sem o ranço melancólico que marcou o álbum anterior. Assim é a faixa de abertura “The Empty Page”, rock de harmonia simples envenenado pelos diálogos dos acordes dissonantes das guitarras via afinações não-usuais – o grande segredo da sonoridade ímpar destes novaiorquinos. Vale lembrar que boa parte do indie rock americano tentou imitar o barato do pessoal sem ao menos aprenderem a afinar suas guitarras. E é justamente esse mood agridoce que dá o tom de todo o restante do disco, sutil melancolia às vezes ensolarada por melodias delicadas.
Nenhuma das músicas lembra a zoeira caótica do início da carreira do grupo, tampouco as partes acessíveis remetem a algumas canções-chiclete de álbuns como Goo (90) e Dirty (92). Mas não deixa de ser um pouco de cada coisa, pois Murray St. lembra outros momentos da carreira do SY, sem que as pistas fiquem muito claras mesmo para admiradores da antiga. Ponto para a banda neste provável álbum de transição, já declararam que a próxima etapa da trilogia será bem diferente. Aguardemos.
Algumas músicas remetem à esquizofrenia sonora desenfreada dos desvarios improvisados de outrora, experimentalismos que enfatizam as já-citadas afinações esquisitas das guitarras, caso de “Karen Revisited”. Mas aqui elas exalam um certo frescor, uma dada leveza nos temas do álbum – nenhum atentado auricular da estirpe de qualquer faixa de Confusion is Sex (83), por exemplo. Apesar de que em vários momentos um certo mood catártico impera geral nas tradicionais jams loucaças de puro esporro noise, molduras surreais para as construções melódicas e harmônicas do grupo. Não é de hoje que o Sonic Youth promove uma verdadeira trip sonora, com canções singelas que, de uma hora para a outra, descambam na total pancadaria.
Tanto é que, à exceção de “Plastic Sun” – dois minutos de porralouquice – nenhuma das músicas se enquadra no formato da tradicional pop song de três minutos. Longe disso, algumas delas chegam a mais de dez minutos de desvario sonoro da melhor qualidade. Prova de que não é preciso vender a alma para a indústria fonográfica para se manter na ativa e também de que verborragia não é sinônimo de falta de conteúdo ou mesmo de uma suposta miopia no foco da articulação de um discurso. Para apreciar um material dessa categoria, é necessário espantar a preguiça que acomete muita gente improdutivamente envolvida com o rock. Por essas e outras razões, vale prestar atenção em cada pequeno detalhe, pois eles sempre trazem belas descobertas a serem esmiuçadas pelo ouvinte/leitor.
E isso não é à toa, resultado de vários anos de dedicação. Mais precisamente 21 anos de carreira, a despeito de toda a sorte de modas passageiras. É desta forma que o Sonic Youth escreve mais um capítulo desta trajetória única no cenário do rock contemporâneo, caso singular onde música de qualidade, integridade, discurso poético rebuscado, longevidade na militância cultural e simplicidade musical em meio a rebuscadas harmonias caminham juntos. Parece idéia impossível de se conceber hoje em dia, não? Mas a lição que fica é a de que o teen spirit e o vigor do roquenrol não precisa necessariamente estar atrelado à rebeldia sem causa dos modismos de molecada barulhenta, ele está aqui intacto na banda desses velhos matutos do indie rock.
Enfim, um álbum que desce redondo da primeira à última faixa. Um trabalho muito bom de uma banda que nunca abriu concessões às regras mercadológicas da indústria do disco. Chega até ser em parte previsível que a cada lançamento venha coisa boa, uma constante neste mais de vinte anos de carreira. "Né brinquedo, não"! Este disco mostra que não basta vestir uniforme de indie rocker e posar de cool pra fazer rock alternativo de primeira, são vários os ingredientes desta bem-sucedida empreitada. Ainda bem que eles nunca decepcionam os fãs, resta saber se vão pintar no Brasil para mais uma turnê. O trabalho tem tudo para agradar aos antigos fãs do grupo, a estrutura das composições segue a tradicional cartilha SY. Mas isso não significa mesmice. Pelo contrário, pois as diretrizes da inusitada verve criativa do grupo continuam intactas como convém ao bom ouvinte de música alternativa.
Murray Street, Sonic Youth (Universal Music)
16º álbum da banda mais alternativa do cenário mainstream, este trabalho foi concebido pelo quinteto como uma opereta dedicada à “parte baixa” de Manhattan, trecho de uma trilogia sobre a tradição cultural do lugar iniciada com o sombrio antecessor NYC Ghosts & Flowers. Desde o título da obra, o espectro do atentado de 11 setembro dá as caras neste trabalho. O nome do play alude à rua onde fica o estúdio no qual gravaram o disco, a poucos quarteirões do que foi um dia o World Trade Center.
Vale lembrar que a banda quase foi afetada pelo incidente já que um dos motores dos aviões que derrubaram as torres gêmeas caiu bem próximo ao local. Por sorte, apenas Jim O’Rourke, agora integrado definitivamente como o quinto integrante da banda, estava por lá, tirando uma soneca e felizmente nada grave acometeu a banda. Por essas e outras, uma atmosfera ensolarada, redentora, dá um colorido todo especial ao disco – contraponto ao pesadelo que assolou a região desde então.
Ao contrário de outras encarnações em disco, nas quais abriram econômicas concessões a uma sonoridade mais populista em relação aos parâmetros indie, a onda do atual quinteto reaparece bem mais arejada, sem o ranço melancólico que marcou o álbum anterior. Assim é a faixa de abertura “The Empty Page”, rock de harmonia simples envenenado pelos diálogos dos acordes dissonantes das guitarras via afinações não-usuais – o grande segredo da sonoridade ímpar destes novaiorquinos. Vale lembrar que boa parte do indie rock americano tentou imitar o barato do pessoal sem ao menos aprenderem a afinar suas guitarras. E é justamente esse mood agridoce que dá o tom de todo o restante do disco, sutil melancolia às vezes ensolarada por melodias delicadas.
Nenhuma das músicas lembra a zoeira caótica do início da carreira do grupo, tampouco as partes acessíveis remetem a algumas canções-chiclete de álbuns como Goo (90) e Dirty (92). Mas não deixa de ser um pouco de cada coisa, pois Murray St. lembra outros momentos da carreira do SY, sem que as pistas fiquem muito claras mesmo para admiradores da antiga. Ponto para a banda neste provável álbum de transição, já declararam que a próxima etapa da trilogia será bem diferente. Aguardemos.
Algumas músicas remetem à esquizofrenia sonora desenfreada dos desvarios improvisados de outrora, experimentalismos que enfatizam as já-citadas afinações esquisitas das guitarras, caso de “Karen Revisited”. Mas aqui elas exalam um certo frescor, uma dada leveza nos temas do álbum – nenhum atentado auricular da estirpe de qualquer faixa de Confusion is Sex (83), por exemplo. Apesar de que em vários momentos um certo mood catártico impera geral nas tradicionais jams loucaças de puro esporro noise, molduras surreais para as construções melódicas e harmônicas do grupo. Não é de hoje que o Sonic Youth promove uma verdadeira trip sonora, com canções singelas que, de uma hora para a outra, descambam na total pancadaria.
Tanto é que, à exceção de “Plastic Sun” – dois minutos de porralouquice – nenhuma das músicas se enquadra no formato da tradicional pop song de três minutos. Longe disso, algumas delas chegam a mais de dez minutos de desvario sonoro da melhor qualidade. Prova de que não é preciso vender a alma para a indústria fonográfica para se manter na ativa e também de que verborragia não é sinônimo de falta de conteúdo ou mesmo de uma suposta miopia no foco da articulação de um discurso. Para apreciar um material dessa categoria, é necessário espantar a preguiça que acomete muita gente improdutivamente envolvida com o rock. Por essas e outras razões, vale prestar atenção em cada pequeno detalhe, pois eles sempre trazem belas descobertas a serem esmiuçadas pelo ouvinte/leitor.
E isso não é à toa, resultado de vários anos de dedicação. Mais precisamente 21 anos de carreira, a despeito de toda a sorte de modas passageiras. É desta forma que o Sonic Youth escreve mais um capítulo desta trajetória única no cenário do rock contemporâneo, caso singular onde música de qualidade, integridade, discurso poético rebuscado, longevidade na militância cultural e simplicidade musical em meio a rebuscadas harmonias caminham juntos. Parece idéia impossível de se conceber hoje em dia, não? Mas a lição que fica é a de que o teen spirit e o vigor do roquenrol não precisa necessariamente estar atrelado à rebeldia sem causa dos modismos de molecada barulhenta, ele está aqui intacto na banda desses velhos matutos do indie rock.
Enfim, um álbum que desce redondo da primeira à última faixa. Um trabalho muito bom de uma banda que nunca abriu concessões às regras mercadológicas da indústria do disco. Chega até ser em parte previsível que a cada lançamento venha coisa boa, uma constante neste mais de vinte anos de carreira. "Né brinquedo, não"! Este disco mostra que não basta vestir uniforme de indie rocker e posar de cool pra fazer rock alternativo de primeira, são vários os ingredientes desta bem-sucedida empreitada. Ainda bem que eles nunca decepcionam os fãs, resta saber se vão pintar no Brasil para mais uma turnê. O trabalho tem tudo para agradar aos antigos fãs do grupo, a estrutura das composições segue a tradicional cartilha SY. Mas isso não significa mesmice. Pelo contrário, pois as diretrizes da inusitada verve criativa do grupo continuam intactas como convém ao bom ouvinte de música alternativa.
Texto de Marcus Marçal publicado em 2002 na Revista Zero. Não é permitida a reprodução deste texto de forma alguma sem permissão prévia, seja em sua forma integral ou parcial. Por favor, contate-me antes via email.
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