A IMAGEM DA MÚSICA II
PRESUNÇÃO METAFÓRICA
Apesar de o quinteto estadunidense, de Cincinatti, Afghan Whigs soar como uma empreitada musical obscura para muita gente por aqui, este videoclipe é bastante conhecido por quem curtia o Lado B do rock mainstream global noventista naquela época.
E "Debonair" foi o carro-chefe da obra-prima que é o quarto álbum de estúdio da banda, Gentlemen (1993) – quarto, se não contabilizarmos o sensacional EP de covers Uptown Avondalle (1992). Vale lembrar, apesar de eu já ter esquecido de contabilizar a estréia do grupo em disco, Big Top Halloween (1988), por ser tão rudimentar sua sonoridade... Ainda que a dica inestimável ao ouvinte seja mesmo a de que, em se tratando deste grupo, não importa o preço, a discografia completa compensa cada centavo despendido para adquiri-la.
E embora a discografia inicial do Afghan Whigs já enuncie uma descida aos subterrâneos, faceta casca-grossa atípica à atmosfera de uma banda com acento black em âmbito rock pop, é em Gentlemen que Greg Dulli instaura o padrão de excelência que caracterizaria seus trabalhos dali em diante. O disco anterior, Congregation (1991), até era este parâmetro em razão do impecável equilíbrio entre os contrastes de preto e branco que tanto emblematizam o que existe de bom na música local, mas seu sucessor acentua as qualidades já esbanjadas antes. Black Love (1996) reforçaria ainda mais a faceta sofisticada da música do Afghan Whigs, mas aí já seria papo para outro post.
Resumindo: é neste álbum que Greg Dulli, o frontman do grupo, definitivamente chega ao inferno para só então depois reviver sem os fardos de suas dívidas para com seu maior credor: ele próprio, em sua faceta soturna. Por essas e outras, a capa do disco traz a fotografia de de um casal de crianças, dos quais o menino certamente representa algum alter-ego ou persona artística do cantor. A inocência e o clima carinhoso e acolhedor da arte da capa do álbum, uma polaróide de tons amarelados, reaparecem pelo avesso em seu verso – o menino que representa Dulli reaparece sozinho em destaque em meio aos tons obscuros às suas costas.
Em se tratando de uma obra repleta de minúcias, a gravadora Elektra apostou suas fichas no perfil sofisticado do trabalho do grupo com aparente devido cuidado, o que se evidencia até mesmo pela profusão de videoclipes dignos de aplausos pela qualidade técnica e teor onírico. E este clipe de “Debonair” simboliza o acerto de contas de Dulli com ele próprio, certamente não é à toa seu mal-encarado semblante nas cenas em que aparece de branco, com uma bengala na mão - o que remete a uma analogia com o Coisa Ruim representado por De Niro em Coração Satânico. A faceta “Carcamano nato” personificada pelo ator apresenta para nós semelhanças com a própria persona artística muitas vezes encarnada por Greg Dulli em seu trabalho com o Afghan Whigs - basta ver o farto referencial, digamos, "Coisa Nossa" aludidos nos cinemáticos temas da banda.
E assim como todo o impecável trabalho autoral de Dulli, seja com o Afghan Whigs ou mesmo com o Twilight Singers, Gentlemen é um disco pesadaço em sua abordagem temática, ainda que as reverências à soul music daquele lugar que um dia existiu com o nome de Nova Orleans envenenadas por guitarrismos garageiros e barulhentos da banda possam nos sugerir o contrário. Mas é fato: apesar de saber compor love songs belíssimas como poucos compositores contemporâneos, a maioria de suas baladas é carregada, seja de delírio, perversões ou mesmo de emoções dilaceradas.
E a versão com imagem desta música reforça esta impressão. Logo no início do videoclipe, o Coisa Ruim aparece sentado no jardim, no playground de uma casa onde crianças brincam, logo atrás de um quadro com emblema cristão. Mais ao fundo, se percebe uma árvore cortada e uma imensa bandeira estadunidense em frente servindo de manta para a janela da casa pelo lado de fora, como se fosse pele que descasca. Na seqüência, entre outras imagens se destaca a de uma águia empalhada e, depois de sua aparição, o mesmo quintal aparece às vezes meio detonado, às vezes impecável como antes... Também vale atentar à metáfora representada pelo cachorro grande de carne osso perambulando pelo lugar, prenunciando o perigo que se caracteriza em tonalidades mais fortes na imagem empalhada de um cão menor e mais fraco, fossilizado sem vísceras sob verniz - animal intimidador que também pode ser visto como outro disfarce do "Coisa Ruim". Mas não se assuste, tudo não passa de alegorias...
No decorrer do filme, há uma clara alusão aos referenciais próprios da música preta estadunidense, a mesma que acende uma velha para aquilo que chamamos de Bem e outra para aquilo que chamamos de Mal. Em trabalhos subseqüentes da banda em vídeo, estes simbolismos são ainda mais enfatizados, pois a arte paira suspensa acima da moralidade atribuída a estes dois espectros de representações do espírito humano.
Vale lembrar que em vários momentos imagens mórbidas aparecem sutilmente destoando de seu oposto representado por bucolismo memorial que caberia perfeitamente em um comercial de margarina, não fosse a presença nefasta que parece transitar facilmente entre os locais retratados no filme – como se o jogo já lhe estivesse ganho. O sofá na sala mais parece um caixão, porém o - digamos - "Cão", bilheteiro do inferno com a face estampada do próprio Dulli, permanece sentado, entediado com seu temporário passatempo diante da tevê, mas suficientemente inquisidor e intimidador, como se esperasse resposta para a pergunta que enuncia apenas com o olhar: “E aí, bambino? Qual vai ser?”
No entanto, a postura de Dulli durante a canção é rivalitária, nos momentos em que a banda executa o tema. Chega a esboçar uma baforada debochada em resposta a seu reflexo que o faz lembrar que terá de ir ao inferno para um acerto de contas, o que o remete às porradarias típicas da infância de todo moleque cujo crescimento também se deu em parte na rua – fator que parece legimitizar a familiaridade de Dulli com o submundo um pouco mais tarde.
Essa dicotomia é quase onipresente em seu trabalho, por isso atenta à faceta bondosa e à faceta bestial que existe dentro de cada ser humano enquanto possibilidades latentes. Por isso o refrão reforça esta perspectiva. É o que não sangra e o que não respira, mas trava suas mandíbulas para então engolir e sorver. É o que fala aos nossos corações e às nossas mentes, pois está no amor compartilhado como tentação em cima de uma cama.
Esta contextualização é o que torna a briga de tons maniqueístas um mero passatempo para o personagem principal ao ponto de a “assombração” resolver flertar com outra possível presa mais aprazível e depois esboçar um olhar resignado como constatação do mal que ali sucumbe. Desiste e sai voado. Ou melhor: vaza!
E , no cômputo geral, leva-o alter ego do artista a não amargar arrependimentos em relação ao que se vive a cada momento, aos amores que arrebatam ou às lembranças que revivem reverberadas ecoando soltas enquanto fragmentos de consciência em fluxo contínuo - não é à toa o Coisa Ruim aparecer ao final do videoclipe com aparência fatigada, à parte a tudo o que acontece à sua volta, mas desejoso de participar do jogo em busca de outras presas, de quem poderia eventualmente barganhar as almas com suas ofertas “irrecusáveis” .
Debonair é uma expressão que seria o equivalente àquilo que chamamos de blasé. Isso denota uma tiração de sarro do próprio Dulli com seu credor. Coisa ruim, nada! Coisa meiga, hein! Presunção metafórica do Tolo Gregório, que chega a tirar sarro da situação em uma de suas canções no álbum seguinte. É quando fala para sua garota não se importar pela alma a pagar pois ele já conhece "o chefe" e o esnoba com o nariz empinado...
Texto de Marcus Marçal. Não é permitida a reprodução deste texto de forma alguma sem permissão prévia, seja em sua forma integral ou parcial. Por favor, contate-me antes via email.
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Apesar de o quinteto estadunidense, de Cincinatti, Afghan Whigs soar como uma empreitada musical obscura para muita gente por aqui, este videoclipe é bastante conhecido por quem curtia o Lado B do rock mainstream global noventista naquela época.
E "Debonair" foi o carro-chefe da obra-prima que é o quarto álbum de estúdio da banda, Gentlemen (1993) – quarto, se não contabilizarmos o sensacional EP de covers Uptown Avondalle (1992). Vale lembrar, apesar de eu já ter esquecido de contabilizar a estréia do grupo em disco, Big Top Halloween (1988), por ser tão rudimentar sua sonoridade... Ainda que a dica inestimável ao ouvinte seja mesmo a de que, em se tratando deste grupo, não importa o preço, a discografia completa compensa cada centavo despendido para adquiri-la.
E embora a discografia inicial do Afghan Whigs já enuncie uma descida aos subterrâneos, faceta casca-grossa atípica à atmosfera de uma banda com acento black em âmbito rock pop, é em Gentlemen que Greg Dulli instaura o padrão de excelência que caracterizaria seus trabalhos dali em diante. O disco anterior, Congregation (1991), até era este parâmetro em razão do impecável equilíbrio entre os contrastes de preto e branco que tanto emblematizam o que existe de bom na música local, mas seu sucessor acentua as qualidades já esbanjadas antes. Black Love (1996) reforçaria ainda mais a faceta sofisticada da música do Afghan Whigs, mas aí já seria papo para outro post.
Resumindo: é neste álbum que Greg Dulli, o frontman do grupo, definitivamente chega ao inferno para só então depois reviver sem os fardos de suas dívidas para com seu maior credor: ele próprio, em sua faceta soturna. Por essas e outras, a capa do disco traz a fotografia de de um casal de crianças, dos quais o menino certamente representa algum alter-ego ou persona artística do cantor. A inocência e o clima carinhoso e acolhedor da arte da capa do álbum, uma polaróide de tons amarelados, reaparecem pelo avesso em seu verso – o menino que representa Dulli reaparece sozinho em destaque em meio aos tons obscuros às suas costas.
Em se tratando de uma obra repleta de minúcias, a gravadora Elektra apostou suas fichas no perfil sofisticado do trabalho do grupo com aparente devido cuidado, o que se evidencia até mesmo pela profusão de videoclipes dignos de aplausos pela qualidade técnica e teor onírico. E este clipe de “Debonair” simboliza o acerto de contas de Dulli com ele próprio, certamente não é à toa seu mal-encarado semblante nas cenas em que aparece de branco, com uma bengala na mão - o que remete a uma analogia com o Coisa Ruim representado por De Niro em Coração Satânico. A faceta “Carcamano nato” personificada pelo ator apresenta para nós semelhanças com a própria persona artística muitas vezes encarnada por Greg Dulli em seu trabalho com o Afghan Whigs - basta ver o farto referencial, digamos, "Coisa Nossa" aludidos nos cinemáticos temas da banda.
E assim como todo o impecável trabalho autoral de Dulli, seja com o Afghan Whigs ou mesmo com o Twilight Singers, Gentlemen é um disco pesadaço em sua abordagem temática, ainda que as reverências à soul music daquele lugar que um dia existiu com o nome de Nova Orleans envenenadas por guitarrismos garageiros e barulhentos da banda possam nos sugerir o contrário. Mas é fato: apesar de saber compor love songs belíssimas como poucos compositores contemporâneos, a maioria de suas baladas é carregada, seja de delírio, perversões ou mesmo de emoções dilaceradas.
E a versão com imagem desta música reforça esta impressão. Logo no início do videoclipe, o Coisa Ruim aparece sentado no jardim, no playground de uma casa onde crianças brincam, logo atrás de um quadro com emblema cristão. Mais ao fundo, se percebe uma árvore cortada e uma imensa bandeira estadunidense em frente servindo de manta para a janela da casa pelo lado de fora, como se fosse pele que descasca. Na seqüência, entre outras imagens se destaca a de uma águia empalhada e, depois de sua aparição, o mesmo quintal aparece às vezes meio detonado, às vezes impecável como antes... Também vale atentar à metáfora representada pelo cachorro grande de carne osso perambulando pelo lugar, prenunciando o perigo que se caracteriza em tonalidades mais fortes na imagem empalhada de um cão menor e mais fraco, fossilizado sem vísceras sob verniz - animal intimidador que também pode ser visto como outro disfarce do "Coisa Ruim". Mas não se assuste, tudo não passa de alegorias...
No decorrer do filme, há uma clara alusão aos referenciais próprios da música preta estadunidense, a mesma que acende uma velha para aquilo que chamamos de Bem e outra para aquilo que chamamos de Mal. Em trabalhos subseqüentes da banda em vídeo, estes simbolismos são ainda mais enfatizados, pois a arte paira suspensa acima da moralidade atribuída a estes dois espectros de representações do espírito humano.
Vale lembrar que em vários momentos imagens mórbidas aparecem sutilmente destoando de seu oposto representado por bucolismo memorial que caberia perfeitamente em um comercial de margarina, não fosse a presença nefasta que parece transitar facilmente entre os locais retratados no filme – como se o jogo já lhe estivesse ganho. O sofá na sala mais parece um caixão, porém o - digamos - "Cão", bilheteiro do inferno com a face estampada do próprio Dulli, permanece sentado, entediado com seu temporário passatempo diante da tevê, mas suficientemente inquisidor e intimidador, como se esperasse resposta para a pergunta que enuncia apenas com o olhar: “E aí, bambino? Qual vai ser?”
No entanto, a postura de Dulli durante a canção é rivalitária, nos momentos em que a banda executa o tema. Chega a esboçar uma baforada debochada em resposta a seu reflexo que o faz lembrar que terá de ir ao inferno para um acerto de contas, o que o remete às porradarias típicas da infância de todo moleque cujo crescimento também se deu em parte na rua – fator que parece legimitizar a familiaridade de Dulli com o submundo um pouco mais tarde.
Essa dicotomia é quase onipresente em seu trabalho, por isso atenta à faceta bondosa e à faceta bestial que existe dentro de cada ser humano enquanto possibilidades latentes. Por isso o refrão reforça esta perspectiva. É o que não sangra e o que não respira, mas trava suas mandíbulas para então engolir e sorver. É o que fala aos nossos corações e às nossas mentes, pois está no amor compartilhado como tentação em cima de uma cama.
Esta contextualização é o que torna a briga de tons maniqueístas um mero passatempo para o personagem principal ao ponto de a “assombração” resolver flertar com outra possível presa mais aprazível e depois esboçar um olhar resignado como constatação do mal que ali sucumbe. Desiste e sai voado. Ou melhor: vaza!
E , no cômputo geral, leva-o alter ego do artista a não amargar arrependimentos em relação ao que se vive a cada momento, aos amores que arrebatam ou às lembranças que revivem reverberadas ecoando soltas enquanto fragmentos de consciência em fluxo contínuo - não é à toa o Coisa Ruim aparecer ao final do videoclipe com aparência fatigada, à parte a tudo o que acontece à sua volta, mas desejoso de participar do jogo em busca de outras presas, de quem poderia eventualmente barganhar as almas com suas ofertas “irrecusáveis” .
Debonair é uma expressão que seria o equivalente àquilo que chamamos de blasé. Isso denota uma tiração de sarro do próprio Dulli com seu credor. Coisa ruim, nada! Coisa meiga, hein! Presunção metafórica do Tolo Gregório, que chega a tirar sarro da situação em uma de suas canções no álbum seguinte. É quando fala para sua garota não se importar pela alma a pagar pois ele já conhece "o chefe" e o esnoba com o nariz empinado...
Texto de Marcus Marçal. Não é permitida a reprodução deste texto de forma alguma sem permissão prévia, seja em sua forma integral ou parcial. Por favor, contate-me antes via email.
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