O SOM DA MÚSICA: LIVRO DOS SONHOS I

Wednesday, March 21, 2007

LIVRO DOS SONHOS I

balzac

Miguel Aurélio sacou uma certa melancolia no ar assim que respirou ao colocar os pés na terra batida daquele lugarejo litorâneo. Não que tal sentimento não lhe fosse companheiro nos últimos tempos, estava ali o tempo todo, mesmo que incorporado por pessoas mais próximas. Até então sempre se considerou audaz, brigão e muitas das vezes, propositadamente arruaceiro. Ninguém entendia nada, só ele. Era como se virasse o tabuleiro, ao ultrapassar os limites do bom senso e as regras e regulamentações decorrentes das amarras sociais dos transeuntes que assistiam ao espetáculo.

Mesmo sabendo que de suas ações lhe caberia algum ônus, o cara simplesmente se divertia com a merda que jogava no ventilador. O preço pelo espanto estampado, na face daqueles que o tentavam dissuadir do considerado inoportuno, lhe causava uma sensação imensamente particular de conforto. Situação recorrente em algumas situações, sem que conseguisse estabelecer ligações entre elas. Com o passar dos anos, aprenderia que sua sensibilidade à flor da pele só se faria respeitada na base da porrada.

Tudo aquilo lhe trazia o lastro inerente à necessidade de se manter bem consigo mesmo, acima de tudo. Olha que o camarada não era nenhuma encarnação de alguma doença social, simplesmente sentia a necessidade de resolver seus problemas sozinho. Ahahah! Seus poucos amigos, salvo raras e honrosas exceções, partiam e chegavam na mesma proporção de novas amizades, novos caminhos a serem compartilhados por outras pessoas. Sabia muito bem o que é estar só rodeado de gente, como naquele verão divertidíssimo e, ao mesmo tempo, sorumbático. A vida é uma caminhada, um aceno a todos com quem esbarra pelo caminho. "Não vou negar a dor, eu quero conhecer a mudança..." era o estribilho do eco a reverberar na memória.

Como resultado dessa necessidade de jogar tudo para o alto e seguir em frente, conforme seus desígnios internos, pagou o preço de uma certa malfadada interpretação daquilo que seu rastro foi deixando escrito na memória de várias pessoas. Como uma bad trip tatuada no cérebro de certas pessoas preguiçosas, enraizadas fisicamente e existencialmente em suas vidinhas desprovidas de maiores necessidades. Sabia que elas nunca tentariam algo além das saídas óbvias do pensamento burro e rasteiro, como a unanimidade de uma torcida de futebol comemorando um gol ou xingando a mãe do juiz.

Ou mesmo como aquele efeito dominó que leva todos os cachorros de uma rua a latirem um após o outro numa sinfonia descerebrada e paranóica de uma ameaça que não acontece, de fato. O perigo anêmico esbravejando a ameaça latente no coração de cada uma delas: o mal que existe e persiste em cada uma delas, mesmo que disfarçado sob a carapaça da auto-defesa.

Mal conhecia o nome que aquela necessidade possuía, alma, mas sabia perfeitamente que suas ações acionavam o apito canino dentro de cada uma dessas pessoas mais próximas, que acreditavam na irrealidade de um filme encenado às suas vistas. Sequer duvidavam da pertinência da tal brincadeira "ficar maluco", existente em qualquer delinqüência voluntária. Clockwork orange para despistar o tédio, a impassibilidade e o vazio que percebia no âmago de cada pessoa que se abria a ele.

E foi rodeado por uma multidão de pessoas histriônicas em sua felicidade febril e mesquinha que sentiu o quanto era bacana saborear a solitude ocasional. Como quem se sente invadido ao incomodar a histeria alheia com seu silêncio. "Mas como?!?!" "Ah foda-se, você não vai entender mesmo". Muitos anos depois, o antigo episódio lhe serviria como parâmetro para avaliar suas próprias mazelas. Participou burocraticamente do riso coletivo e, sem a menor parcimônia, resolveu proporcionar a todas aquelas pessoas material para que entendessem aquela situação sob outro prisma, a partir de outro ponto-de-vista. Ali percebeu que estava só e usaria tal sentimento como pretexto a fim de que não o deixassem subjugar em hipótese alguma. Seria seu maior crítico, até que aprendesse a lidar com a dor. Nunca teve medo dela, negá-la seria negar parte de sua própria alma.

...

Certa vez, alguém lhe disse, ainda muito novo, que a felicidade dificilmente dura muito tempo, então melhor seria saborear as alegrias o máximo que pudesse, como também juntasse esforços para aprender a nutrir-se com as intempéries. Essa noção de polaridade esteve sempre presente em sua vida, naturalmente tinha a perfeita noção da atração entre opostos. Além do mais, aprender a lidar com os fracassos tornaria a vitória um prato mais saboroso. Aprender a enxergar essa outra face se tornaria uma obsessão em vários momentos de sua existência, assim conseguiria contemplar a realidade desprovida de disfarces, como a substância bruta de cada coisa existente lhe sobressaltando aos olhos. Racionalizou tanto, até chegar a um ponto de entender a conveniência da irracionalidade pertinente em cada existência, imperceptível quase. Para alguns inconcebível.

De cara, não notou o baque da conclusão que havia chegado. Muito jovem ainda, só aconteceria algum tempo depois, quando encontrou dentro de si a potencialidade de variar de um extremo ao outro, de circular entre ambientes contraditoriamente complementares. Teve até gente falando que não conseguia entender o que se passava em sua cabeça, quando na verdade não havia nada para entender. Apenas uma necessidade de saciar sua inquietação, um fútil brinquedo. Quer dizer, nada é assim tão simples. Sempre soube, tinha uma predisposição, adquirida com o passar dos anos, de detectar pontos de tensão. Poderia utilizar isso do modo que melhor que conviesse.

Seu progenitor talvez tenha sido o primeiro a perceber e sugeriu-lhe o imponderável, em razão de suas próprias inquietações recônditas. "Vai lá, eu acredito em você", como se as conexões não-verbais existentes entre eles não deixassem dúvidas de que realmente era o melhor caminho a seguir. E era mesmo, apesar de tudo levar a crer que não. Sabia que a dor era inevitável, mas mais confortável ainda saber que é possível domá-la. Pensou naqueles tempos de solidão e sabia que essa sensação compartilharia com o filho, nada assim que não se pudesse lidar. Na verdade, foi um presente que lhe deu, hoje consegue muito bem perceber o substrato positivo de tudo aquilo, de toda aquela tamanha incoerência aos padrões banais das medrosas expectativas alheias. Ponto.

Depositou uma centelha de coragem no coração do garoto que foi lá, meio amedrontado, mas sabendo que não podia recusar a proposta. Seria uma covardia, uma decepção dirigida a alguém que muito lhe creditara. E foi, sem muito saber o que esperava, a não ser de que a partir dali em diante teria de aprender a bater, a apanhar, a se defender sozinho...

Point of no return, como se dissessem a ele para não olhar para trás. O que aconteceu em vários momentos, até que pudesse sorver toda aquela aflição como mera frugalidade. Sabia que não havia nada demais em lamber a ferida de vez em quando, não era difícil se defender. Exceto da condescendência daqueles que o amavam e de gente problemática que realmente confunde as coisas, sabe até hoje que disso não havia muita escapatória. Até existia, perceberia isso com o passar dos anos. Mas era desnecessário, enfim, sabia que precisava se expor ao máximo. Só assim calaria suas próprias trevas.

...

Reviu e tentou reviver tudo aquilo que lhe aprazia antes, mas notou um brilho diferente em cada olhar conhecido. Como se pontos de interrogação tomassem o lugar de rostos de pessoas que já conhecia, como se mexesse em terreno pantanoso ao qual lhe fosse proibido. Percebeu, de cara, se importar demais com questões de menor importância. Mas foi, não dava pra voltar atrás e continuou. O garoto ainda aprenderia a lidar com as sombras com carinho, afagando os dissabores com ternura, como naquela canção que gostava. Encarar todos os seus erros, além da culpa que lhe fora incutida por outrem mas que realmente existia em sua alma, até que ela se tornasse humo. Resplandecesse.

Anos depois retornaria ao tal point of no return atrás de alguma emoção outrora esquecida, como uma parábola a qual nunca dera a menor bola. Mas sempre lhe valeria a máxima: "I don’t want a Jesus freak telling me about the god in the sky..." Se recompôs até se tornar apto a encarar a batalha renovado, ainda se assustaria várias vezes com o medo incrostado nos olhos de todas as pessoas covardes que lhe passassem pela frente a fim de lhe tomar um pouco de seu espírito. Nessas horas, forçosamente lembrava de seu sentimento dirigido ao pai, manifestado sob a forma de uma alegoria. "Tudo o que você me ensinou é certo / Chegada a hora de eu lhe dizer isso / E se eu falhar, será apenas uma lágrima / A enxugaria como o suor do seu rosto / Se eu caísse, do chão eu me levantaria / Não vou te decepcionar..."

...

Enquanto o sol raiava, Miguel precisou dormir... Como aconteceu em outras situações, novamente não se reconheceu. Apesar de saber o tempo todo que era o mesmo, apenas mais velho. Enfim, aperfeiçoado.

23/07/2002

Texto de Marcus Marçal. Não é permitida a reprodução deste texto de forma alguma sem permissão prévia, seja em sua forma integral ou parcial. Por favor, contate-me antes via e-mail.

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