JUKEBOX IV
"Series of Dreams"
O MELHOR DO ESPÍRITO HUMANO EM NOSSA SÉRIE DE SONHOS
Imagine você ainda moleque, ouvindo falar de um sujeito a princípio ordinário, mas reverenciado por todos os seus heróis. "Mas como pode? Poxa, é esse maluco?" As mãos calejadas de carpinteiro de canções universais arquetípicas, as mesmas as quais o artesão se refere como oriundas de uma indisfarçada ironia sob a pecha de inspiração divina, matéria de um mundo que nosso vão raciocínio sequer tangencia, sorrateiro em terreno impalpável. Muitas vezes você dúvida da existência de uma entidade metafísica que explicasse o que apenas devesse ser sentido, quiçá o que pudesse ser categorizado como força criadora de todas as coisas. Certezas ancestrais postas cada vez mais em cheque paralelamente ao florescer cada vez maior de todas as potencialidades criadoras do homem que, tal e qual a uma parábola arquetípica de ovelha fulgídia, se volta contra suas raízes. Para mais a frente retornar cabisbaixo, à procura do recanto do lar. Uma metáfora da vida de todos nós, flores que não foram ceifadas abruptamente do melhor de nós mesmos pela selvageria nata do simples fato de existir.
Metáfora que só pode dizer respeito a quem porventura ainda requeira nos recantos mais escuros da alma o conforto de tempos em que as certezas eram ilusoriamente confortáveis.
Em algumas canções, pede perdão, implora proteção aos mais queridos. Mas e se Deus for um cara como nós? Um eremita maltrapilho que, generoso, se relega ao nosso questionamento para que implementemos nossa evolução. Fé, legado ancestral de valor inestimável em contraponto a sua disponibilidade ao nosso alcance. Elemento simbólico, abstração concreta,
E se Deus, em sua generosidade absoluta, se deixasse existir em todos nós, para que reconhecêssemos nosso próprio reflexo no espelho vivo que é o próximo? Para reconhecê-lo em ti mesmo,
Uma canção, um resumo de trinta anos de uma trajetória de desbravador,
O mais fantástico dos seis outtakes das sessões do aclamado Oh Mercy era considerada por alguns envolvidos a melhor música da safra. Mas Dylan, inexplicavelmente, não quis que ela entrasse no disco. E olha que o álbum foi muito bem recebido na época de seu lançamento.
Produzida por Daniel Lanois, que se notabilizou por trabalhos com um quarteto irlandês, entre outros, ele conseguiu captar uma atmosfera típica de suas contribuições ao conjunto irlandês, notoriamente seguidores do mestre, ao ponto de bono vox adaptar à sua maneira vários versos do maior homem do mundo que relevou o conhecimento e fez brilhar - ó, que beleza - esta nova geração. Bono e praticamente todo o rock, diga-se.
E olha que os caras não tiveram contato, sequer interagiram em estúdio. Simplesmente cada um fez a sua parte e saiu essa lindeza toda. Na letra, confessional pra caralho, o velho casca aborda conclusões e observações colhidas na experiência de seus então 30 anos de carreira. A junção entre os elementos que formam uma composição musical estão ali, irrepreensíveis. Mais motivos para o cara não ser nada menos que gênio? Tá bom! Dylan canta com feeling e técnica rústica com as quais expõe a crueza de suas melodias e harmonias geniais de tão simples, o ritmo marcado pelas intervenções corretas de baixo e bateria fazem cama aconchegante para o cantor descarregar toda a sua emoção. Melhor assim?
Não é fácil! O cara consegue fazer um épico de seis minutos com nada mais que quatro acordes, daqueles mais manjados que o pálido lombo glúteo Kojac de Angus Young nos home videos ao vido do ac/dc. Além do mais, desce redondo, macio e reanima, sem a mentira do bordão publicitário. Sem ressaca ou headache no dia seguinte. Dó maior, Sol maior somados aos complementares Lá menor e Fá maior para a coisa não ficar monocórdica. Longe disso, a parada foi tão bem finalizada que os instrumentos eqüivalem a uma orquestra entoando sonoridades que provavelmente não vêm deste mundo...
E a voz? A VOZ! Muitos cantores ordinários dados como bardos do bom canto não passam de onanistas do próprio gogó, narcisistas da suposta profundidade de suas gargantas. O mestre Zimmerman, não. Ligado desde os primórdios às ancestralidade e raízes de seu próprio povo, é econômico ao ponto de não ousar aparecer mais do que o necessário. E nem precisa, se levarmos em conta a grandeza de cada canção sua, em particular. Mantras.
Tamanha economia beira o paroxismo a ponto de torná-lo uma antítese do bom cantar pela aspereza de sua voz. "Eles não sabem nada de música", sem fazer esforço, sacaneia seus detratores enquanto transforma cada canção sua de acordo com sua pilha na hora, demonstrando uma liberdade atípica ao cenário mainstream do qual ele faz parte. Quer dizer, que ele ajudou a criar. E o mestre pode tirar essa onda. Respeito.
Mesmo sem ser propriamente bem entendido, muitos infiéis baixam a guarda, deixam a pompa e lhe pedem benção com aquele misto de respeito e receio de terem sua ignorância expostos ao ridículo. E o maior homem do mundo revela disfarçada complacência em relação aos mais humildes. Há muito já batera de frente à unanimidade idiota. Bah, várias vezes!
Enfim, a maior entidade do mundo pop. E temos dito! Guarde sua heresia para a próxima invenção mentirosa do mercado, ok? Junto a muitos de seus contemporâneos, Dylan é também biografia da famigerada cultura pop, um reality show vivo da vida real desnuda do ilusório e fantasioso mundo pop e seus infindáveis charlatães travestidos de mágicos de oz. A partir deles, o tal do roque germinou, floresceu, amadureceu e envelheceu como fenômeno do que antigamente se convencionou como cultura de massa.
Um mergulho em sua vasta obra, que mais se parece com uma atlética travessia por todos os mares existentes e os nunca dantes navegados, revela ao leitor infindáveis maravilhas escondidas à distância da superfície. O fundo do mar revela tesouros da humanidade, perólas perdidas, espécimes raros num universo em constante transformação. Não diferentes daquelas que o Homem promove regularmente em suas canções, standards ou não, a fim de lhes tirar o mofo. Evitável, mas esquecido pela maioria de seus colegas de classe, simpáticos ao demônio da máquina de fazer grana a qualquer custo.
Integridade? Nah, palavra por demais banal para expressar algo que vai muito além de mera celebração deslumbrada com aptidões natas à nossa humanidade, esquecidas e solapadas pela realidade cotidiana de sermos condicionados como pequenas peças na engrenagem da máquina de moer gente.
E a obra do mestre apresenta apenas as facetas públicas de um personagem riquíssimo. Santo, devil, generoso, mesquinho, humilde, ostentador, bajulador, arrogante, missionário da verdade, mentiroso patológico, devoto, herége e um et cetera por demais abrangente, totalitário do que se compõe a nossa humanidade, essência de humano...
Se você curte roque ou música pop, não titubeie. Peça-lhe a benção. É quando o camarada te faz uma sutil repreensão, pois não se trata de nenhuma santidade. Humano, demasiadamente humano. Com aquela mesma voz oscilando do pato rouco à taquara rachada, capaz de promover uma ponte do real com o que existe de mais divino.
Mas quando você estiver indo embora, desencantado e decepcionado com sua grosseria, o grão-mestre rabugento carrega no rosto aquele sorriso acolhedor que você esperava, mas não vê. "Vai lá, criança! Não há nada de sobre-humano, tudo não passa de uma grande batalha. Então, mãos à obra. Deus nos abençoe", enquanto caminha sozinho em meio à toda multidão com o vestuário maltrapilho de nossa universal realeza disfarçada.
Texto de Marcus Marçal escrito originalmente em outubro de 2003. Não é permitida a reprodução destes textos de forma alguma sem permissão prévia, seja em sua forma integral ou parcial. Por favor, contate-me antes via e-mail.
O MELHOR DO ESPÍRITO HUMANO EM NOSSA SÉRIE DE SONHOS
Imagine você ainda moleque, ouvindo falar de um sujeito a princípio ordinário, mas reverenciado por todos os seus heróis. "Mas como pode? Poxa, é esse maluco?" As mãos calejadas de carpinteiro de canções universais arquetípicas, as mesmas as quais o artesão se refere como oriundas de uma indisfarçada ironia sob a pecha de inspiração divina, matéria de um mundo que nosso vão raciocínio sequer tangencia, sorrateiro em terreno impalpável. Muitas vezes você dúvida da existência de uma entidade metafísica que explicasse o que apenas devesse ser sentido, quiçá o que pudesse ser categorizado como força criadora de todas as coisas. Certezas ancestrais postas cada vez mais em cheque paralelamente ao florescer cada vez maior de todas as potencialidades criadoras do homem que, tal e qual a uma parábola arquetípica de ovelha fulgídia, se volta contra suas raízes. Para mais a frente retornar cabisbaixo, à procura do recanto do lar. Uma metáfora da vida de todos nós, flores que não foram ceifadas abruptamente do melhor de nós mesmos pela selvageria nata do simples fato de existir.
Metáfora que só pode dizer respeito a quem porventura ainda requeira nos recantos mais escuros da alma o conforto de tempos em que as certezas eram ilusoriamente confortáveis.
Em algumas canções, pede perdão, implora proteção aos mais queridos. Mas e se Deus for um cara como nós? Um eremita maltrapilho que, generoso, se relega ao nosso questionamento para que implementemos nossa evolução. Fé, legado ancestral de valor inestimável em contraponto a sua disponibilidade ao nosso alcance. Elemento simbólico, abstração concreta,
E se Deus, em sua generosidade absoluta, se deixasse existir em todos nós, para que reconhecêssemos nosso próprio reflexo no espelho vivo que é o próximo? Para reconhecê-lo em ti mesmo,
Uma canção, um resumo de trinta anos de uma trajetória de desbravador,
O mais fantástico dos seis outtakes das sessões do aclamado Oh Mercy era considerada por alguns envolvidos a melhor música da safra. Mas Dylan, inexplicavelmente, não quis que ela entrasse no disco. E olha que o álbum foi muito bem recebido na época de seu lançamento.
Produzida por Daniel Lanois, que se notabilizou por trabalhos com um quarteto irlandês, entre outros, ele conseguiu captar uma atmosfera típica de suas contribuições ao conjunto irlandês, notoriamente seguidores do mestre, ao ponto de bono vox adaptar à sua maneira vários versos do maior homem do mundo que relevou o conhecimento e fez brilhar - ó, que beleza - esta nova geração. Bono e praticamente todo o rock, diga-se.
E olha que os caras não tiveram contato, sequer interagiram em estúdio. Simplesmente cada um fez a sua parte e saiu essa lindeza toda. Na letra, confessional pra caralho, o velho casca aborda conclusões e observações colhidas na experiência de seus então 30 anos de carreira. A junção entre os elementos que formam uma composição musical estão ali, irrepreensíveis. Mais motivos para o cara não ser nada menos que gênio? Tá bom! Dylan canta com feeling e técnica rústica com as quais expõe a crueza de suas melodias e harmonias geniais de tão simples, o ritmo marcado pelas intervenções corretas de baixo e bateria fazem cama aconchegante para o cantor descarregar toda a sua emoção. Melhor assim?
Não é fácil! O cara consegue fazer um épico de seis minutos com nada mais que quatro acordes, daqueles mais manjados que o pálido lombo glúteo Kojac de Angus Young nos home videos ao vido do ac/dc. Além do mais, desce redondo, macio e reanima, sem a mentira do bordão publicitário. Sem ressaca ou headache no dia seguinte. Dó maior, Sol maior somados aos complementares Lá menor e Fá maior para a coisa não ficar monocórdica. Longe disso, a parada foi tão bem finalizada que os instrumentos eqüivalem a uma orquestra entoando sonoridades que provavelmente não vêm deste mundo...
E a voz? A VOZ! Muitos cantores ordinários dados como bardos do bom canto não passam de onanistas do próprio gogó, narcisistas da suposta profundidade de suas gargantas. O mestre Zimmerman, não. Ligado desde os primórdios às ancestralidade e raízes de seu próprio povo, é econômico ao ponto de não ousar aparecer mais do que o necessário. E nem precisa, se levarmos em conta a grandeza de cada canção sua, em particular. Mantras.
Tamanha economia beira o paroxismo a ponto de torná-lo uma antítese do bom cantar pela aspereza de sua voz. "Eles não sabem nada de música", sem fazer esforço, sacaneia seus detratores enquanto transforma cada canção sua de acordo com sua pilha na hora, demonstrando uma liberdade atípica ao cenário mainstream do qual ele faz parte. Quer dizer, que ele ajudou a criar. E o mestre pode tirar essa onda. Respeito.
Mesmo sem ser propriamente bem entendido, muitos infiéis baixam a guarda, deixam a pompa e lhe pedem benção com aquele misto de respeito e receio de terem sua ignorância expostos ao ridículo. E o maior homem do mundo revela disfarçada complacência em relação aos mais humildes. Há muito já batera de frente à unanimidade idiota. Bah, várias vezes!
Enfim, a maior entidade do mundo pop. E temos dito! Guarde sua heresia para a próxima invenção mentirosa do mercado, ok? Junto a muitos de seus contemporâneos, Dylan é também biografia da famigerada cultura pop, um reality show vivo da vida real desnuda do ilusório e fantasioso mundo pop e seus infindáveis charlatães travestidos de mágicos de oz. A partir deles, o tal do roque germinou, floresceu, amadureceu e envelheceu como fenômeno do que antigamente se convencionou como cultura de massa.
Um mergulho em sua vasta obra, que mais se parece com uma atlética travessia por todos os mares existentes e os nunca dantes navegados, revela ao leitor infindáveis maravilhas escondidas à distância da superfície. O fundo do mar revela tesouros da humanidade, perólas perdidas, espécimes raros num universo em constante transformação. Não diferentes daquelas que o Homem promove regularmente em suas canções, standards ou não, a fim de lhes tirar o mofo. Evitável, mas esquecido pela maioria de seus colegas de classe, simpáticos ao demônio da máquina de fazer grana a qualquer custo.
Integridade? Nah, palavra por demais banal para expressar algo que vai muito além de mera celebração deslumbrada com aptidões natas à nossa humanidade, esquecidas e solapadas pela realidade cotidiana de sermos condicionados como pequenas peças na engrenagem da máquina de moer gente.
E a obra do mestre apresenta apenas as facetas públicas de um personagem riquíssimo. Santo, devil, generoso, mesquinho, humilde, ostentador, bajulador, arrogante, missionário da verdade, mentiroso patológico, devoto, herége e um et cetera por demais abrangente, totalitário do que se compõe a nossa humanidade, essência de humano...
Se você curte roque ou música pop, não titubeie. Peça-lhe a benção. É quando o camarada te faz uma sutil repreensão, pois não se trata de nenhuma santidade. Humano, demasiadamente humano. Com aquela mesma voz oscilando do pato rouco à taquara rachada, capaz de promover uma ponte do real com o que existe de mais divino.
Mas quando você estiver indo embora, desencantado e decepcionado com sua grosseria, o grão-mestre rabugento carrega no rosto aquele sorriso acolhedor que você esperava, mas não vê. "Vai lá, criança! Não há nada de sobre-humano, tudo não passa de uma grande batalha. Então, mãos à obra. Deus nos abençoe", enquanto caminha sozinho em meio à toda multidão com o vestuário maltrapilho de nossa universal realeza disfarçada.
Texto de Marcus Marçal escrito originalmente em outubro de 2003. Não é permitida a reprodução destes textos de forma alguma sem permissão prévia, seja em sua forma integral ou parcial. Por favor, contate-me antes via e-mail.
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