DE ORELHADA I
ROCKSTÓRIA VIA SACERDOTISA PUNK
Trampin', Patti Smith (Arista)
A sacerdotisa punk retorna à cena com mais um trabalho de primeira. Figura feminina mais influente na cultura musical pop, Yoko é hors concours e Madonna é sobrinha-bastarda recém-convertida, Patti Smith escreve com maestria mais um capítulo de sua singular biografia como artista. Se no anterior, Gung Ho (2000), focalizou texto e música na ancestralidade da América, aqui a viúva do lendário MC5 Frederick "Sonic" Smith centra seu arsenal no panorama político da Era Bush. Ou seja, em vez de criar alegorias com o arquétipo do índio americano dizimado pelo colonizador do disco anterior, um paralelo distante com o preto-velho afrobrasileiro, aqui ela centra foco na atualidade e aborda as motivações políticas de seu país qual um verdadeiro xamã, como atestam as canções "Mother Rose", "Trespasses", "Stride of the mind", "Peaceable Kingdom" e "My blakean year". Seu discurso é norteado pela imparcialidade de um narrador atento, ora sob a perspectiva estadunidense após 11/9, ora sob a comoção causada pelas intervenções recentes da máquina militar dos mestres da guerra.
A produção da bolacha registra um som mais cristalino do que se encontra em seus mais recentes lançamentos, o que faz de Trampin' seu melhor disco desde Gone Again (1996). Embora o som remeta à delicadeza do clássico Dream of Life (1988), a verve punk da artista se faz presente no discurso contundente com o qual esbanja todo seu talento e sua sensibilidade no manejo com as letras. Rock de protesto anos-luz da banalidade do engajamento que elevou Guevara a mero ítem da iconografia pop. Como não podia deixar de ser, o disco é de digestão difícil, uma vez repleto de sutilezas que servem de recompensa ao ouvinte/leitor mais atento. É mais um álbum punk com cadência lenta (hello, Michael Stipe) assim como Horses (1975) e Radio Ethiopia (1976), a anos-luz do lugar comum com o qual os três acordes e a fúria do gênero são freqüentemente diluídos em trilha sonora de comercial de iogurte em formato videoclipe. Sabe aqueles momentos em que a música pop transcende ao mero entretenimento formatado pra consumo? É por aí...
Como acontece desde o lançamento de Horses, a pedra filosofal do punk, ela reforça a gestalt de seu estilo: homenageia os entes queridos - "Cartwheels" é dedicada à sua filha Jesse Paris, que debuta em disco como pianista de mãos cheias; tece dedicatórias repletas de alegorias a seus mestres - Cash, Gandhi, Blake, Martin Luther King e a cantora de ópera Marian Anderson; relembra marcos das lutas populares, em "Jubilee", e acena a si mesmo em mais um épico memorável para sua vasta coleção, "Radio Baghdad", no qual alude a tendência de seu país agir como polícia política planetária, tema também abordado em seu segundo álbum, na faixa-título "Radio Ethiopia".
Fechando o pacote de mais uma coleção de diamantes sonoros, a cidadã-da-Terra Patti Smith busca na tradição dos hinos evangélicos negros um pouco da paz de espírito com a qual os descendentes de escravos confortam suas almas de geração à geração. E usa justamente um spiritual niggar dos anos 30, de autor anônimo, para batizar o nono álbum de uma impecável trajetória discográfica. Se você acha que entende de atitude rock e não sabe de quem se trata, é uma boa oportunidade para conhecer a Santa Ira d'Esta Mulher chamada Patti Smith.
Texto de Marcus Marçal escrito originalmente em julho de 2004, publicado na Revista Zero. Não é permitida a reprodução destes textos de forma alguma sem permissão prévia, seja em sua forma integral ou parcial. Por favor, contate-me antes via e-mail.
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Trampin', Patti Smith (Arista)
A sacerdotisa punk retorna à cena com mais um trabalho de primeira. Figura feminina mais influente na cultura musical pop, Yoko é hors concours e Madonna é sobrinha-bastarda recém-convertida, Patti Smith escreve com maestria mais um capítulo de sua singular biografia como artista. Se no anterior, Gung Ho (2000), focalizou texto e música na ancestralidade da América, aqui a viúva do lendário MC5 Frederick "Sonic" Smith centra seu arsenal no panorama político da Era Bush. Ou seja, em vez de criar alegorias com o arquétipo do índio americano dizimado pelo colonizador do disco anterior, um paralelo distante com o preto-velho afrobrasileiro, aqui ela centra foco na atualidade e aborda as motivações políticas de seu país qual um verdadeiro xamã, como atestam as canções "Mother Rose", "Trespasses", "Stride of the mind", "Peaceable Kingdom" e "My blakean year". Seu discurso é norteado pela imparcialidade de um narrador atento, ora sob a perspectiva estadunidense após 11/9, ora sob a comoção causada pelas intervenções recentes da máquina militar dos mestres da guerra.
A produção da bolacha registra um som mais cristalino do que se encontra em seus mais recentes lançamentos, o que faz de Trampin' seu melhor disco desde Gone Again (1996). Embora o som remeta à delicadeza do clássico Dream of Life (1988), a verve punk da artista se faz presente no discurso contundente com o qual esbanja todo seu talento e sua sensibilidade no manejo com as letras. Rock de protesto anos-luz da banalidade do engajamento que elevou Guevara a mero ítem da iconografia pop. Como não podia deixar de ser, o disco é de digestão difícil, uma vez repleto de sutilezas que servem de recompensa ao ouvinte/leitor mais atento. É mais um álbum punk com cadência lenta (hello, Michael Stipe) assim como Horses (1975) e Radio Ethiopia (1976), a anos-luz do lugar comum com o qual os três acordes e a fúria do gênero são freqüentemente diluídos em trilha sonora de comercial de iogurte em formato videoclipe. Sabe aqueles momentos em que a música pop transcende ao mero entretenimento formatado pra consumo? É por aí...
Como acontece desde o lançamento de Horses, a pedra filosofal do punk, ela reforça a gestalt de seu estilo: homenageia os entes queridos - "Cartwheels" é dedicada à sua filha Jesse Paris, que debuta em disco como pianista de mãos cheias; tece dedicatórias repletas de alegorias a seus mestres - Cash, Gandhi, Blake, Martin Luther King e a cantora de ópera Marian Anderson; relembra marcos das lutas populares, em "Jubilee", e acena a si mesmo em mais um épico memorável para sua vasta coleção, "Radio Baghdad", no qual alude a tendência de seu país agir como polícia política planetária, tema também abordado em seu segundo álbum, na faixa-título "Radio Ethiopia".
Fechando o pacote de mais uma coleção de diamantes sonoros, a cidadã-da-Terra Patti Smith busca na tradição dos hinos evangélicos negros um pouco da paz de espírito com a qual os descendentes de escravos confortam suas almas de geração à geração. E usa justamente um spiritual niggar dos anos 30, de autor anônimo, para batizar o nono álbum de uma impecável trajetória discográfica. Se você acha que entende de atitude rock e não sabe de quem se trata, é uma boa oportunidade para conhecer a Santa Ira d'Esta Mulher chamada Patti Smith.
Texto de Marcus Marçal escrito originalmente em julho de 2004, publicado na Revista Zero. Não é permitida a reprodução destes textos de forma alguma sem permissão prévia, seja em sua forma integral ou parcial. Por favor, contate-me antes via e-mail
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